Em Kaunas também há Manjar dos Deuses

por maio 23, 2023

Queria tomar nota do aquecimento de equipa para pensar se faz sentido alterar algo do que as equipas que treino normalmente fazem: a que minuto entram em campo, como começam o aquecimento, que ordem seguem. Queria, mas várias vezes mudei o meu foco para as bancadas. A festa em vermelho tinha começado.

A idade é um posto: diz o ditado popular e dizem os deuses do basquetebol. E quando se está no país do basquetebol, é melhor escutarmos com atenção o que os deuses têm a dizer – caso contrário, há sempre um par de Sergios para nos relembrar.

Como para tantos outros, foi com o génio de Sergio Rodriguez e Sergio Llull que terminou o meu fim-de-semana em Kaunas: três dias em crescendo, que começaram mal mas que terminaram de forma épica – pelo menos para mim, não tanto para o mar vermelho que nasceu na Grécia e foi desaguar ao Báltico.

A temporada do Olympiacos fez do vermelho a cor da esperança e arrastou consigo a fiel legião de adeptos que se fez deslocar de variados pontos da Europa. O meu voo para a Lituânia saiu de Londres e já aí vinham adeptos vestidos de vermelho; estava a mais de 1500km de distância, num país em que o basquetebol nem no Top10 de modalidades entra e já sentia a Final4 a começar.

Para a Lituânia, um país que ama basquetebol, receber uma Final4 foi um presente para os seus habitantes. Vários foram os lituanos com quem falei sobre basket e sobre esta fase final e fosse a conversa pelo caminho que fosse, era certo que iríamos sempre chegar a dois lugares comuns: “O basket é como uma segunda religião na Lituânia” e “Vens de Portugal? Só tu e mais duas pessoas gostam de basket, não?”. Pelo meio, histórias bonitas de como o basquetebol foi muito mais do que um desporto para um povo lituano que se queria libertar da União Soviética e que via nos duelos do Zalgiris e Statyba (agora Rytas Vilnius) e CSKA de Moscovo verdadeiros momentos de demonstração de força e de orgulho próprio.

A equipa de Kaunas não conseguiu chegar às meias-finais, mas Šarūnas Jasikevičius, Rokas Jokubaitis e Donatas Motiejūnas eram motivos mais do que suficientes para que os lituanos sentissem a ligação a alguns dos intervenientes diretos. Aliás, todos eles foram jogadores do Zalgiris e o actual treinador do FC Barcelona e o jogador do AS Monaco nasceram mesmo naquela cidade.

Com todos estes ingredientes, a minha primeira presença numa Final4 da EuroLeague tinha tudo para correr bem. Achava eu.

Tentei entrar na Žalgirio Arena duas horas antes do jogo da meia-final e logo aí começaram os problemas: os leitores de QR code não estavam a conseguir ler o código dos meus bilhetes e tive de ir para o balcão de informações. Pouco tempo depois, mais de uma centena de adeptos estavam à minha volta com o mesmo problema: a sua maioria gregos, que queriam ir para o pavilhão o mais cedo possível para não perderem um segundo da meia-final frente ao AS Monaco.

As diferenças culturais fizeram-se notar. Os lituanos com calma a tentar resolver o problema, a trabalhar atrás de um computador, os gregos num crescendo de ira, queixas e promessas de levar tudo à frente. Os lituanos espantados a dizer que a boa notícia é que ainda faltavam duas horas, os gregos a dizer que “não estão a perceber, nós já devíamos estar lá dentro!”. Nota: foram escolhidas as frases mais educadas e pacíficas.

Com a pressão campo inteira feito pelos adeptos do Olympiacos, lá se arranjou forma de entrar na Arena, mesmo que os códigos continuassem a não ser lidos. Já lá dentro queria prestar atenção ao pré-aquecimento para ver que rotinas individuais andam os jogadores do topo neste lado do Atlântico a fazer. Queria tomar nota do aquecimento de equipa para pensar se faz sentido alterar algo do que as equipas que treino normalmente fazem: a que minuto entram em campo, como começam o aquecimento, que ordem seguem. Queria, mas várias vezes mudei o meu foco para as bancadas. A festa em vermelho tinha começado.

Os primeiros 20 minutos da Final4 foram, para mim, decepcionantes. De tal forma que dei por mim a olhar para os lugares vazios na bancada central e, pior, a olhar para o jogo pelos olhos de treinador e não pelos olhos de adepto, algo que só me acontece quando o jogo não está a ser suficientemente entusiasmante. Isto pode soar estranho dado o meu lado de treinador, mas desde que me conheço que sou adepto de basket, enquanto que treinador só há 15 anos. Sempre que posso, sempre que não tenho de estudar o jogo ou o adversário ou a “minha” própria equipa, gosto de ver o jogo como adepto.

Depois do intervalo tudo mudou: o Olympiacos fez um parcial de 27-2, as bancadas incendiaram-se e a festa continuou até ao apito final…do jogo seguinte! Sim, porque enquanto Real Madrid e FC Barcelona jogavam, a festa nas bancadas continuava a ser feita pelos gregos.

Antes deste jogo, na conversa com um adepto de Madrid (outro que me perguntou o que fazia ali um português) fiquei a saber que tinham sido expulsos dos seus lugares pelos adeptos do Olympiacos que simplesmente ocuparam as secções que quiseram sem que as forças de segurança conseguissem fazer o que fosse. Disseram que se iriam queixar à organização e pedir dinheiro à EuroLeague. Achei engraçado.

No domingo, a festa foi total. Na Avenida da Liberdade em Kaunas, onde não circulam carros, só se via vermelho. Pareciam ser ainda mais do que na sexta. Confirmou-se: entre sábado e domingo tinham chegado cerca de dois mil gregos à Lituânia. Eram eles quem trazia cor e som à festa da EuroLeague.

Tal como na sexta, também no domingo quis ir para o pavilhão duas horas antes: para o caso de voltar a ter problemas com o QR code, mas também para voltar a ver os aquecimentos. Sentei-me na minha cadeira para os dois dias, Sector 332, Fila 13, Lugar 3. Os meus vizinhos lituanos chegaram quando faltavam 15 minutos para começar o jogo e perguntaram o que estava a achar da Final4. Ambos partilhávamos a desilusão com as estratégias de entretenimento da EuroLeague: de forma resumida, uma tentativa de fugir à cultura europeia de amor pelos clubes e de aproximar a uma cultura de entretenimento mais típica do que se vê nos EUA. A identidade, a paixão, o fervor pelos seus clubes são alguns dos principais factores diferenciadores do fenómeno do basquetebol europeu e querer minimizar isso não me parece que seja a solução para o futuro do desporto no nosso continente. É certo que é preciso acompanhar a evolução e adaptar aos tempos correntes, mas há pontos chaves dos quais não se deve fugir.

E enquanto tínhamos esta agradável troca de ideias, vemos muitos pontos vermelhos a começar a correr pelo pavilhão em busca de sítio para se estabelecerem. Isto porque um dos sectores que tinha sido ocupado pelos adeptos do Olympiacos na sexta-feira estavam agora ocupados pela claque do Real Madrid, protegida pelas forças de segurança locais. Claro que os gregos escolheram o sector 332 para se instalar. Uma invasão total àquela zona da bancada que, só foi resolvida passada uma hora, com todos os que ali estavam a terem de ceder os lugares aos adeptos do Olympiacos e a ter de procurar outro lugar no pavilhão.

O que vi eu do jogo do 3.º e 4.º lugar? O aquecimento.

Veio a Final. Um festival de bem lançar para lá da linha de três pontos abriu a partida e com o Olympiacos a sair na frente o ambiente que se fez sentir naquele pavilhão veio tornar mais claro que ir a Atenas ver um Panathinaikos – Olympiacos é um daqueles objectivos de vida que vou ter de cumprir. Podem criar o caos antes do jogo, mas no que toca a apoiar a sua equipa, os adeptos do Olympiacos são um espectáculo tão bom ou melhor do que aquele que os seus jogadores levam a cabo dentro de campo. Ali não há diferenças: há um amor comum pelo clube e não interessa o estrato social, não interessa a cor, a idade, o género – todos vestem de vermelho, todos cantam a plenos pulmões, todos sabem as músicas e as coreografias. Todos se juntam para apoiar o Olympiacos.

O Olympiacos dominou durante grande parte do jogo, mas depois de o Real Madrid ter conseguido encostar ainda na primeira parte, não mais os gregos conseguiram uma vantagem confortável e isso foi aumentando o estado de nervos no pavilhão. A cinco minutos do fim do jogo, com o Olympiacos na frente vi pessoas, no meu novo sector, a chorar e a abraçarem-se; emoções a sair por todos os poros, um hiato de 10 anos que parecia querer chegar ao fim e a cinco minutos de distância de se conseguir.

Os de Madrid começavam a defender melhor e de repente conseguem duas saídas em contra-ataque com vantagem numérica, mas não conseguem concretizar nenhuma delas. Nesse momento achei que o Real tinha deixado passar a oportunidade de ganhar o momento do jogo. Mas a verdade é que, como em tantas outras vezes na vida, estava enganado. O Olympiacos não conseguia marcar, e Sergio Rodriguez fez uma segunda parte absolutamente impressionante. Aliás, marcou-me a calma e a serenidade com que o camisola 13 do Madrid liderou a sua equipa neste jogo do título, mesmo quando parecia que os campeões espanhóis não tinham resposta para dar aos campeões gregos. A partir daquele bloqueio directo central, Chacho descontraiu a defesa do Olympiacos: a finalizar na passada, a encontrar Causeur para mais um triplo, a encontrar Tavares a rolar para o cesto. Ao seu lado andava Sergio Llull. Um distante Sergio Llull que me fez perguntar se não estaria a ter tempo a mais de utilização, tendo em conta o que estava a render. A resposta chegou a três segundos do fim com Llull a fazer o que Llull sempre fez: a resolver quando tem de resolver.

Silêncio total. Ao longe ouvi os adeptos do Madrid a festejar. Pela primeira vez em todo aquele domingo ouvi os adeptos espanhóis. Incrédulos os gregos esperavam que Bartzokas conseguisse sacar um coelho da cartola e que Sloukas repetisse um lance que durante o fim-de-semana passou vezes e vezes sem conta nos ecrãs da arena: o seu buzzer-beater contra o Fenerbahçe nos quartos-de-final.

Mãos na cabeça, t-shirts vermelhas a cobrir lágrimas que escorriam, rostos de desilusão por todo o lado. Incrédulos, sem perceber o que tinha acabado de acontecer. O Olimpo ali tão perto e a esfumar-se uma vez mais e os gregos que minutos antes se preparavam para encher de festa noite de Kaunas acabaram a sair em silêncio, resignados à sorte que os deuses tiveram para lhes dar. Não os do Olimpo, os de Madrid.

por MIGUEL TAVARES [@miguel5tavares]

Autor

Miguel Tavares

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