A NBA está cheia de grandes estrelas desde a sua fundação. Há jogadores que marcam uma geração, que entram nas mentes de jovens nos quatro cantos do mundo e ajudam a alimentar um círculo virtuoso que mantém a liga numa trajetória de crescimento.
Ser o melhor de sempre, contudo, não significa necessariamente assumir uma posição histórica na evolução da liga. LeBron James é há praticamente duas décadas uma das maiores figuras da NBA e, apesar de ser cada vez mais também uma referência cultural – no sentido lato do termo – e motivo de inspiração para milhões de futuros jogadores (e algumas dezenas já na liga), não tem o mesmo impacto naquilo que é a própria arquitetura do basquetebol.
Em 35 anos, a NBA passou de não ter uma linha de três pontos para ter uma que parece obsoleta. Em 1979/1980, na temporada de introdução do triplo, os Golden State Warriors lançaram 121 vezes e só conseguiram somar os três pontos em 27 ocasiões. A barreira das mil tentativas só foi quebrada 15 anos depois, em 1994/1995, e foi preciso esperar mais treze anos para se ultrapassar as duas mil.
A temporada atual é a nona consecutiva com pelos menos 2000 triplos tentados pelos Warriors. A série começou com Stephen Curry já na equipa em 2013/2014 e o resto… o resto é história. A diferença é que o base da equipa agora sediada em São Francisco não fez a diferença apenas por ser um lançador de triplos, fê-lo através de um desafio constante à distância do cesto. Foi recuando, recuando, recuando e tornou banal um lançamento que outrora era apenas visto como uma tentativa desesperada com o cronómetro a dar as últimas.
Foi com Stephen Curry ao leme, numa embarcação que agora tem Luka Doncic e Trae Young como marujos, que a NBA começou a navegar por mares nunca dantes navegados. Só que em vez de descobrir o caminho marítimo para a Índia, a liga parece estar a entender o melhor percurso rumo ao lançamento de quatro pontos. Há quem diga que seja uma questão de tempo.
Em 2015/2016, no ano em que Curry bateu o seu recorde de triplos tentados (886), os Harlem Globetrotter introduziram a linha de quatro pontos, esquecendo as duas estações que valiam quatro pontos até então. Nos fins de semana All-Star, os concursos de triplos também começaram a introduzir dois momentos para lançamentos mais longos. As experiências estão lá e, se vierem a ser concretizadas, o seu criador será simples de identificar: Stephen Curry.
Não foi o primeiro, não será o último
Podemos até não ter noção mas a NBA está em constante mudança. Há pequenas mudanças de regras e de interpretações que são aprimoradas para fazer frente a situações que vão surgindo ano após ano. Bruce Brown e Zaza Pachulia, por exemplo, foram responsáveis por sucessivos ajustes ao espaço para apoio após o lançamento.
Mas há uma diferença entre ajustes e mudanças de fundo. Essas só estão ao alcance dos predestinados. Se o lançamento de quatro pontos será uma introdução para fazer face ao crescente domínio de uma técnica, muitas outras do passado serviram para equilibrar o tabuleiro. Foram regras criadas para controlar vantagens desmedidas que jogadores do outro mundo pareciam ter sobre o mais comum dos mortais.
Wilt Chamberlain, por exemplo, o homem que era tão capaz de fazer 100 pontos como 55 ressaltos num jogo, teve de ser «controlado» através das dimensões do garrafão – mais do que um metro mais largo após a alteração – ou mesmo da criação de regras como goaltending ofensivo. Shaquille O’Neal, outro portento das tabelas, tornou-se uma figura tão intimidante junto ao aro que a liga foi obrigada a introduzir um limite de tempo que um defesa pudesse permanecer na área pintada sem a proximidade de um adversário. Se quisermos fazer uma incursão no basquetebol universitário, a NCAA chegou mesmo a banir os afundanços para que Kareem Abdul-Jabbar (na altura conhecido por Lew Alcindor) para controlar a supremacia do poste de UCLA.
Por cada exemplo que se dá, mais parece haver um denominador comum: postes dominadores. As exceções existem mas não há dúvida de que a NBA tem avançado muito à conta de muitos dos seus postes mais dominadores. Por isso não é de espantar que uma das alterações mais significativas na história da liga tenha surgido precisamente à conta do primeiro grande poste dominador que brilhou nos pavilhões um pouco por todo o país.
«O olho negro do basquetebol profissional»
A NBA é hoje uma liga viva, dinâmica, de constante movimento e emoção. O tempo é controlado à décima de segundo e seis unidades são mais do que suficientes para transformar o fracasso em glória eterna.
A regra dos 24 segundos por ataque faz parte da liga desde 1954. Está tão impregnada na liga que muitos dos jogadores têm já cérebros tão programados para controlar o tempo que nem precisam de olhar para os cronómetros (outros há que nem com auxílios visuais e gritos do banco).
O tempo de ataque é uma característica tão fundamental de um jogo de basquetebol que chega a ser difícil imaginá-lo sem isso. Aliás, só mesmo os mais velhos poderão contar na primeira pessoa o aborrecido que alguns encontros conseguiriam ser e a forma como algumas equipas exploravam os cantos mais sombrios das regras para anular as grandes vedetas do outro lado e esperar por um milagre.
É assim que chegamos a George Mikan. O poste dos Lakers nas décadas de 50 só não é mais recordado hoje em dia porque a agora equipa de Los Angeles nunca decidiu retirar a camisola da estrela que brilhou ao mais alto nível junto aos lagos do Minnesota.
Entre 1947 e 1954, Mikan venceu o título em cinco ocasiões e tornou-se uma das maiores ameaças da equipa do histórico treinador John Kundla. Foi o melhor marcador em três edições consecutivas (1949 a 1951) e era praticamente impossível pará-lo.
E aqui o praticamente existe porque a 22 de novembro de 1950 houve um treinador que decidiu «inovar». Os Minneapolis Lakers iam jogar com os Fort Wayne Pistons de Murray Mendenhall e a estratégia passou por congelar ao máximo o tempo útil de jogo, construindo os alicerces de um jogo que travestiu a essência da NBA e que levou a que quatro anos depois a liga decidisse introduzir a nova regra.
«Só há um Mikan. Há três anos que o tento parar mas não há nada que funcione», desabafou Mendenhall antes de delinear a estratégia que iria ser motivo de conversa em todo o lado. A ideia tinha tanto de simples como de infame. Assim que o jogo começou, o poste dos Pistons Larry Foust segurou a bola e ficou parado. Sem se mexer. Sem esboçar uma tentativa de passe. Sem fazer nada. Deixou o tempo passar e alimentou a frustração de adversários, árbitros e mais de 7000 espetadores que estavam nas bancadas.
O relatório do jogo revela que os Pistons chegavam a estar três minutos consecutivos com a bola nas mãos. Só por cansaço ou por divisão de tarefas é que procuravam um passe. Ainda assim, a equipa foi para o intervalo a perder por 11-13 e George Mikan sozinho somara 12 pontos.
A segunda parte trouxe uma história diferente e apesar de os Lakers terem entrado para o último minuto a vencer por 18-17 (com 15 pontos de Mikan), os Pistons conseguiram intercetar uma bola na altura em que já eram os adversários a queimar tempo e foi mesmo Larry Foust, o homem que tinha iniciado tudo, a fazer os dois pontos da vitória.
O encontro terminou 19-18. O resultado que até para um jogo de andebol parece ter poucos golos tornou-se um recorde na liga. Continua a ser – e não há dúvida de que nunca será batido – o jogo com menos pontos na história da NBA. Aliás, 19-18 atualmente será um resultado natural para o segundo terço do primeiro período, e isto se as equipas não estiverem muito inspiradas.
Murray Mendenhall não teve problemas em elogiar a própria estratégia. «Ganhámos, não ganhámos? Queríamos uma oportunidade para aproveitar a melhor forma de os vencer.» John Kundla estava desiludido e garantiu mesmo que se aquilo era basquetebol, não queria ter nada a ver com a modalidade.
Os jornalistas apelidaram o jogo de tragédia e sentiram que os Pistons tinham dado um olho negro à liga, quatro décadas antes de os Bad Boys de Bill Laimbeer e companhia fazerem o mesmo noite após noite.
A liga também não gostou da inovação estratégica e tomou medidas. Dias depois, uma reunião em Nova Iorque serviu para estudar a introdução de novas regras. O tempo de ataque ficou em estado embrionário mas foi assinado um acordo de honra no qual as equipas se comprometiam a evitar repetir estratégias do mesmo tipo no futuro. No primeiro dia de 1951, os Minneapolis Lakers voltaram a defrontar os Fort Wayne Pistons, desta vez fora de casa. George Mikan fez o mínimo de pontos na fase regular (13, menos dois do que no trágico jogo de novembro) e os Pistons venceram por 13 pontos, por 83-70. Era a prova de que Murray Mendenhall estava errado e, afinal, havia outras formas de travar o primeiro grande poste na história da liga.
por RUI PEDRO SILVA [@rpsilva]