Porta aberta para a Rua: Turbulência na pista

por out 8, 2019

Estive cerca de um mês sem poder praticamente mexer-me. Foi-me dito que tinha de parar completamente; tinha de descansar o cérebro totalmente e tentar estar em ambientes calmos e escuros durante, pelo menos, uma semana.

As aulas começam finalmente. Afinal de contas, foi para isso que vim. Grandes anfiteatros, com mais de 400 alunos a assistir ao mesmo tempo. Em vésperas de frequências e exames, não era incomum ver alunos sentados nas escadas. Tive a sorte de estar em algumas cadeiras com uma colega de equipa mais velha, a Baelie, que havia mudado de curso e por isso estava também a fazer algumas cadeiras de primeiro ano. No início, ela apenas me orientava pelos corredores confusos do único Campus canadiano inserido na área protegida da UNESCO.

Mais tarde, vim a perceber que a Baelie seria a pessoa com o maior impacto na minha vida aqui. Apesar de canadiana, não é de Ontário, pelo que também partilhava da angústia de estar longe. Talvez isso nos tenha aproximado, mas muito mais nos fez continuar a ser amigas.

Mais do que gostar das mesmas coisas, desprezamos os mesmos temas – e isso, sim, foi o que nos uniu. Temos o mesmo sentido de humor, vemos a vida do mesmo ângulo e é curioso pensar que passámos grande parte das nossas vidas em continentes diferentes.

(Sei que somos mesmo amigas por termos apenas uma fotografia juntas.)

Aqui não há praxe. A primeira semana de aulas (chamada “Frosh Week”) é acompanhada de vários eventos no Campus e cada aluno escolhe onde quer ir, consoante o que lhe interessa: há concertos, corridas de espuma, espetáculos de magia, stand-up, cinema ao ar livre, etc., mas também eventos mais específicos a cada curso, ano de estudo, condição desportiva (intramurals ou varsity), entre outros. Esta é a maneira mais fácil de ficar familiarizado com o Campus e é também uma excelente forma de conhecer pessoas e fazer amigos. O facto de não haver turmas torna esta tarefa particularmente difícil. É muito raro encontrar alguém com o mesmo horário. Mesmo que estejam no mesmo ano, a fazer as mesmas cadeiras, é possível que estejam em secções diferentes e portanto, com diferentes horários.

Por ser caloira, estudante internacional, atleta e residente on-campus, tenho várias opções de escolha e há mil e um eventos que parecem ter sido desenhados para mim. Acabo por ir aos mais variados sítios e participar em imensos eventos de início de ano. Junto-me a um clube, para que não tenha só o basquete e as aulas.

No entanto, o melhor de todos estes eventos é o que, na verdade, acontece depois da Frosh Week: o famoso Homecoming. Nos Estados Unidos, por norma, trata-se de um jogo de futebol americano. No Canadá, como não podia deixar de ser, é um jogo de hóquei no gelo.

No final de setembro, todos os alunos da Universidade se dirigem à Arena e pintam-na de vermelho (esse é, literalmente, o slogan: “Paint the Meridian Red”). Esse jogo, normalmente com um rival clássico, dita o início de todas as épocas desportivas e, apesar de acontecer depois do início das aulas, marca também o início de mais um ano letivo.

Apesar de já ter alguns hábitos de estudo, é aqui que aprendo a organizar-me a sério. Estou por minha conta. E isso é tão libertador quanto assustador. Tenho o meu horário esquizofrénico, onde aponto as horas a que acordo, quando e o que vou comer, quando vou tomar banho, etc. – só assim é possível saber quantas horas do dia me restam para estudar. Além disso, tento ocupar a cabeça o mais possível para não pensar que estou longe e que nunca mais é Natal. (Durante muito tempo, estar aqui não era mais do que uma contagem decrescente para voltar.) Nos tempos livres, leio muito e vejo filmes/séries sem legendas para estar exposta à nova língua sem ter de passar pelo embaraço de falar por gestos quando as palavras me faltam.

Setembro, que parecia ser infinito, chega ao fim. Isto significa que os jogos da pré-época iriam começar. Outubro apressa-se a chegar e nós deslocamo-nos a Windsor, uma cidade na fronteira com os Estados Unidos, de onde é possível ver Detroit num dia de céu limpo. As minhas colegas garantem-me que é perto, mas estamos quatro horas dentro do autocarro. (Vim mais tarde a descobrir que uma viagem até cinco horas é considerada curta.)

A equipa da University of Windsor havia sido campeã no ano anterior, pelo que era um teste exigente. Ao fim de três períodos de um jogo que não tinha sido nada mau para uma primeira exibição, lesiono-me novamente. Desta vez, uma lesão da qual nunca tinha ouvido falar: uma concussão. Esta acontece quando o cérebro embate contra a parede do crânio devido a uma pancada forte.

Estive cerca de um mês sem poder praticamente mexer-me. Foi-me dito que tinha de parar completamente; tinha de descansar o cérebro totalmente e tentar estar em ambientes calmos e escuros durante, pelo menos, uma semana. Isso significava não estudar, não ler, não treinar… A cura para a concussão era fechar-me no quarto de persianas corridas e esperar que passasse.

Assim foi. Uma semana a brincar ao quarto escuro. Depois, uma semana com atividade intelectual ligeira. Depois, uma semana com atividade física ligeira. De cada vez que houvesse um aumento de sintomas, era preciso voltar um passo atrás no processo de recuperação.

Foi muito difícil. Não podia fazer absolutamente nada. Nessa altura, consultava o Google Flights quase diariamente. Queria ir para casa, deixar tudo para trás. Não valia a pena. Eram mais as coisas más do que as coisas boas e as más pareciam pesar incrivelmente mais do que as boas.

Mas é tudo uma questão de perspetiva (ou aritmética).

por ANA SOFIA RUA

Autor

Ana Sofia Rua

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