A March Madness é de todos nós

por mar 24, 2022

Acontece todos os anos. Quem gosta, fica encantado. Quem não gosta, dificilmente resiste a pensar em fazer pelo menos um palpite sobre como serão as duas semanas mais épicas do basquetebol universitário.

A passagem de Kyrie Irving por Duke quase não foi suficiente para que os cabides do balneário se habituassem ao cheiro do amaciador da sua roupa (partindo do princípio de que produtos de lavagem de roupa não são contra a sua tábua de princípios). Mas outros casos houve em que jogadores fizeram três ou quatro temporadas e ajudaram a construir verdadeiras rivalidades universitárias e não apenas um corrupio de talentos à procura de um lugar ao sol mais brilhante.

Kareem Abdul-Jabbar, então Lew Alcindor, foi dominador com UCLA. Michael Jordan e Patrick Ewing defrontaram-se numa final, tal como Magic Johnson e Larry Bird. A história da March Madness traz-nos ainda momentos brilhantes como a exibição de Bill Walton em 1973 contra Memphis State, a derrota surpreendente de Olajuwon contra NC State, o lançamento de Laettner para dar a vitória a Duke ou o desconto de tempo de Chris Webber que nunca existiu.

Não surpreende ninguém que estes estejam entre os momentos mais memoráveis. Eram grandes jogadores e tornaram-se estrelas maiores depois de chegar à NBA (tirando Laettner, vá, que ainda assim teve um brinde nos Jogos Olímpicos de Barcelona). Construíram em cima do seu legado universitário e treparam patamares não só de qualidade mas também de protagonismo.

Bo Kimble e Hank Gathers

É precisamente por isso que a March Madness não é deles. É de todos nós, dos comuns mortais, daqueles que tiveram na prova, mesmo não participando, o seu momento mais alto. A March Madness é a memória de uma vida.

É de Bo Kimble, por exemplo. O shooting guard chegou à NBA em 1990 como oitava escolha da primeira ronda mas esteve apenas três temporadas na liga, entre LA Clippers e New York Knicks. Se esse período foi facilmente esquecido, ninguém ignora a comovente homenagem que o então jogador de Loyola Marymount fez ao amigo Hank Gathers em cada um dos jogos em que participou.

A história é fácil de contar mas difícil de suportar. Hank Gathers era colega de equipa de Bo Kimble e morreu em campo depois de se sentir mal durante uma jogada. Os dois conheciam-se desde o secundário e Bo Kimble ia garantir que o amigo não seria esquecido, por isso decidiu fazer o primeiro lance livre de cada encontro com a mão esquerda, em homenagem a Hank Gathers.

«Ele era um inacreditável ser humano e um jogador muito bom, mas era terrível na linha de lance livre. Era tão mau que tinha mudado a mão que lançava: a técnica com a direita era tão má que se sentia mais à vontade ao tentar com a esquerda», disse Bo Kimble.

O primeiro jogo no torneio foi apenas 12 dias depois da morte de Hank. E Bo, fiel à promessa que tinha feito e anunciado aos jornalistas, lançou com a mão esquerda e… converteu. Loyola Marymount avançou três rondas, fez quatro jogos e Bo Kimble nunca falhou com a mão esquerda. Nos quatro encontros disputados, só em três foi para a linha de lance livre e mostrou-se infalível.

Hoje, Bo Kimble é um dos fundadores de uma organização sem fins lucrativos com o objetivo de reduzir as mortes provocadas por problemas cardíacos. A memória nunca desaparecerá.

A memória de uma vida

Há um segundo patamar deste raciocínio. E aqui até podemos passar por Portugal. A March Madness não é das futuras estrelas da mesma forma que os escalões de formação não são dos jogadores profissionais. São jogadores com um estatuto diferente, que têm na competição sénior os seus maiores momentos e desilusões, as suas principais memórias. Os escalões de formação são apenas mais uma etapa para atingir um destino.

Todos conhecemos o processo. Os anos podem passar e as conversas quando se reúnem antigas equipas, ou quando nos cruzamos com alguém dessa era na rua, continuam a recordar sempre o mesmo: aquele jogo, aquela época, aquele campeonato, aquela subida ou descida de divisão, aquela celebração que ficará para sempre marcada. São os momentos altos de uma carreira que nunca o foi. Que nunca o seria. Era uma carreira com prazo de validade e todos o sabíamos. No limite, até podia ser um interturmas.

A vida não ia esperar. Ia chegar a universidade, o trabalho, as responsabilidades, a falta de tempo (e também de talento), para continuar a conciliar paixões e trepar patamares de um filtro que permite a continuidade de cada vez menos atletas.

A March Madness não está longe. Para cerca de meia centena de jogadores todos os anos, a competição não é mais do que uma montra para dar o salto. Para milhares, é o objetivo derradeiro. O pináculo de uma carreira. O Santo Graal do desporto universitário. A meta que todos querem poder dizer que cruzaram pelo menos uma vez ou que, parafraseando um famoso ditado anglófono, morreram a tentar.

Podem tornar-se médicos, advogados, empresários, gestores ou publicitários. Podem até continuar ligados ao desporto, mas nunca se desligarão daqueles anos que marcaram o fim da sua progressão enquanto basquetebolistas. São as histórias que vão ficar. E para isso nem é preciso chegar ao March Madness. Quantos de nós não temos histórias que terminam com um «e ficámos tão perto…»?

Há narrativas para todos os gostos. Os que conseguiram contra todas as probabilidades. Os que caíram à primeira. Os que protagonizaram uma «cinderella story», como Florida Gulf Coast em 2013 e a sua célebre «Dunk City». Sherwood Brown, a maior figura desta equipa, até se pode ter tornado jogador profissional – atua na Roménia e já passou por Qatar e Finlândia, por exemplo -, mas aquele ano em que conduziu a equipa ao Sweet Sixteen a partir de um lugar de 15.º cabeça de série continuará a figurar para sempre como a melhor memória.

Estas são histórias que se conhecem. São apenas um grão de areia num deserto de sonhos que não chegaram a matar a sede. A cada canto e esquina dos Estados Unidos conseguimos encontrar alguém que jogou alguma vez na vida. Pode até não ter sido basquetebol. Pode até não ter sido numa divisão universitária que permitisse pelo menos uma janela para a March Madness, mas há sempre uma história para contar.

A March Madness será sempre um sol à volta da qual milhares de adolescentes gravitam ano após ano. Uma pequena elite passa por ela com a grandeza dos predestinados, mas para a esmagadora maioria será sempre o ponto alto de uma vida que nunca a chegou a ser. É deles a March Madness. É de todos nós. É um verdadeiro teatro dos sonhos, que se manterá para sempre vivo enquanto dormimos e nas conversas saudosistas ao longo dos anos.

«Já alguma vez te contei a história daquela vez em que…»

por RUI PEDRO SILVA [@rpsilva]

Autor

Rui Pedro Silva

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