Louie Dampier, o rei do lançamento da ABA

por fev 3, 2022

Há coisa de um mês, trouxe aqui a história de Kenny Sailors, um dos responsáveis pela criação do jumpshot que hoje conhecemos. Desta vez, venho falar do primeiro jogador a explorar a sério o lançamento de três pontos como arma ofensiva. Ainda a história dos lançamentos, pensa o leitor. Vale a pena.

Desta vez, falamos de um lançador que apareceu muito antes de Curry, Harden ou Lillard. Antes até de Ray Allen, Reggie Miller, Mark Price. Nasceu em Indiana, e durante a carreira apresentava um farto bigode. Falamos de… Louie Dampier! (Por um momento pensaste que era o Larry Bird, confessa). Louie Dampier é o recordista (com larga margem!) de triplos marcados na história da American Basketball Association (ABA), a liga da bola azul, branca e vermelha que surgiu em 1967 para revolucionar o basquetebol.

Dampier não é um nome que figure habitualmente nas galerias de grandes jogadores da história do basquetebol. Mas, tal como Kenny Sailors, o seu legado é bem maior que a sua fama. Lou teve uma carreira discreta na NBA, para onde entrou já no final da carreira e devido à fusão em 1976 desta liga com a ABA, onde jogou a parte mais relevante da sua carreira.

Foi na ABA que Louie Dampier se destacou, sendo um dos únicos três basquetebolistas que jogou todas as nove temporadas da liga e apenas um dos dois que o fizeram sempre ao serviço da mesma equipa. Consultando as páginas de recordes da ABA, o seu nome salta a vista: além do recorde de triplos (794), é o jogador com mais pontos marcados (13.726), assistências (4044), jogos (728) e minutos (27.770).

Nas nove temporadas de existência da liga, esteve sempre ao serviço dos muito competentes Kentucky Colonels, sendo uma das referências da equipa no título conquistado em 1975 e nas finais perdidas de 1971 e 1973. Depois da fusão da NBA com a ABA, esteve três anos na rotação dos San Antonio Spurs de George Gervin, nunca marcando mais de dez pontos por jogo. Mas olhemos para o que fez na ABA, onde mostrou o futuro do basquetebol, quarenta anos antes do advento do lançamento de três pontos.

Meio século à frente do seu tempo

Quando a ABA foi criada, a NBA apresentava problemas de identidade e muitas dificuldades em afirmar-se como a única liga profissional de basquetebol. Ainda que tenha resistido ao aparecimento e dissolução de outras competições concorrentes, a afirmação só aconteceu depois da já referida fusão com a ABA, que reforçou o leque de estrelas da NBA com a chegada de basquetebolistas como Julius “Dr. J” Erving, Rick Barry, George Gervin, ou Artis Gilmore.

 As 11 equipas que iniciaram a ABA apresentavam-se numa competição com um estilo de jogo mais virado para o espectáculo: defesa pressionante e contra-ataques alucinantes que contrastavam com um estilo de jogo mais lento da NBA. Uma das novidades que contribuía para esta diferença era a linha de três pontos, até aí apenas apresentada na única temporada de existência da American Basketball League (ABL) uns anos antes, em 1961-62. (Curiosamente, um dos grandes defensores da linha de três pontos foi o gigante Mr. Basketball, George Mikan, um dos fundadores da ABA e primeiro comissário da liga, que na sua lendária carreira pelos Minneapolis Lakers dificilmente terá lançado mais de uma mão cheia de vezes de fora do garrafão).

Foi neste ambiente de descoberta de uma nova faceta do basquetebol que entrou Louie Dampier, com 23 anos. O base de 1,83m chegou à recém-criada liga vindo de três épocas de sucesso na NCAA ao serviço dos Kentucky Wildcats (esses!) de Adolph Rupp, onde fez dupla com Pat Riley (esse!). O seu percurso universitário foi de sucesso: foi escolhido para Consensus All-American da NCAA em 1966 e 1967, anos em que também foram seleccionados nomes como Dave Bing, Elvin Hayes ou Lew Alcindor.

Dampier e Riley separaram-se na saída universitária: Pat Riley seguiu para a NBA e Dampier seguiu para a ABA. Nos Kentucky Colonels fez parelha com outro base, Darel Carrier.

Darel Carrier era um lançador de três pontos de muita qualidade, especialmente para a época. Na sua carreira de seis anos na ABA, lançou 38% de longa distância, marcando mais de um por jogo nas suas três primeiras épocas.

Dampier, apesar de já ser um excelente lançador na universidade – o seu treinador, Adolph Rupp, disse que era o melhor lançador que alguma vez treinara –nem mostrou muita apetência para a longa distância na primeira época como profissional, convertendo apenas 26% das suas tentativas. Ainda assim, foi All-Star e marcou 20,7 pontos por jogo. Nessa primeira época da ABA, o líder de três pontos foi Les Salvage, que tentou 5,9 triplos por jogo, mas não foi muito eficiente, marcando 1,9 por jogo (31,9%).

Dampier, contudo, mostrou na segunda época o que seria o basquetebol dali a meio século. (Que exagero, pensa o leitor. Vamos aos números.)

Em marcação de pontos, Louie subiu para 24,8 por jogo. De 2,0 tentativas por jogo de lançamento de três em 1967-68, Dampier saltou para 7,1 – 552 tentativas em 78 jogos. Coloquemos este número em perspectiva. Em toda a carreira, Larry Bird nunca tentou mais de 237 numa época. Stephen Curry, na época de rookie, tentou 380. Reggie Miller nunca tentou mais de 536 e Ray Allen só ultrapassou os 552 em duas temporadas em Seattle (653 e 556).

A marca que Dampier estabeleceu em 1968-69 só foi ultrapassada 22 anos depois, em 1990-91, por Michael Adams, que tentou 564 triplos pelos loucos Denver Nuggets de Paul Westhead. (Estes Nuggets começaram a época 0-7, a sofrer sempre mais de 130 pontos por jogo… Sofreram 107 pontos numa parte de um encontro… Só esta temporada merece um texto. Está anotado!)

Regressemos a Dampier. Tentou muitos triplos, mas e quantos converteu? Muitos, também. Apesar do enorme volume de lançamento, Lou converteu 36,1% das suas tentativas, uma marca excelente que permitiu marcar um total de 199 triplos na temporada. Este recorde ainda durou mais anos que o dos lançamentos tentados, e até foi precisa uma alteração de regras para que fosse batido.

Foi John Starks quem superou a marca, com 217 triplos em 1994-95, na primeira de um trio de épocas em que a NBA tentou uniformizar a linha de três pontos, passando-a de 7,24m (6,71m nos cantos) para 6,71m a toda a volta do aro, antes de regressar às medidas originais em 1997-98. Com a mesma linha de três pontos de Dampier, o primeiro a ultrapassar os 199 triplos de 1968-69 foi Antoine Walker, em 2000-01, com 221 triplos convertidos.

A época extraterrestre Dampier não foi um mero acaso. Na temporada seguinte, em 1969-70, voltou a repetir a façanha com números assustadoramente consistentes: 198 triplos marcados em 548 tentativas (36,1%). São números que estão longe das épocas excêntricas James Harden em Houston (1028 tentados em 2018-19), mas muito semelhantes daquilo que está a fazer esta época: Harden está nesta altura com uma média de 2.4 triplos marcados em 7.0 tentativas por jogo.

Como se percebe pela época de Les Salvage e pelos números de Dampier, a ABA percebeu rapidamente a vantagem que a linha de três pontos poderia dar no jogo. A utilização do lançamento triplo na liga foi bem mais imediata do que na NBA, onde este lançamento demorou mais a entrar no arsenal das equipas, como evidenciam os números apresentados acima.

Apesar da maior preponderância do triplo na ABA, nenhum jogador se aproximou dos registos de Dampier nas restantes seis épocas da liga. O próprio Lou reduziu o volume de tentativas a partir da quarta temporada, à medida que assumia outro papel no conjunto dos Kentucky Colonels.

Com a chegada de Dan Issel em 1970-71, Dampier desceu de 26,0 pontos por jogo para 18,5, deixando as maiores despesas de marcação de pontos para o recém-chegado. Na época seguinte, chegou Artis Gilmore, completando a espinha dorsal da equipa que foi a três finais da ABA, vencendo o título de 1975.

Neste contexto, Dampier passou a assumir um papel primário de organizador de jogo e só depois pensava em marcar. Os momentos cruciais da partida, porém, eram o seu momento. Segundo Hubie Brown, treinador dos Colonels no ano do título e lendário comentador da NBA, Dampier terá marcado nove (!) game-winners na temporada de 1974-75.

Na NBA, depois da fusão com a ABA, Dampier já estava na fase descendente da carreira e deixou de poder recorrer ao lançamento exterior para tirar vantagem: a junção das duas ligas aconteceu em 1976, mas a NBA não quis adoptar a linha de três pontos, que só foi introduzida em 1979-80 – logo após Lou se reformar.

O impacto do alcance de Dampier era, no entanto, inegável. No livro Loose Balls: The Short, Wild Life of the American Basketball Association, Hubie Brown relata a sua singularidade enquanto jogador e o quão à frente do seu tempo estava.

“Quando treinava o Dampier, desenhei uma jogada para que ele lançasse de três pontos no contra-ataque. Ele levava a bola e, em vez de atacar o cesto para a passada, lançava a partir do drible da linha de três pontos – a percentagem de lançamento dele era boa a esse ponto, especialmente numa jogada assim, em que não estava a forçar o lançamento e tinha tempo para se preparar. Tínhamos jogadas de reposição de bola para ele lançar de três. Era um lançador notável”, recorda.

E ainda acrescenta sobre uma das “lendas” da ABA: “O Louie Dampier era um bom jogador que usou os três pontos para se tornar excelente. Era um daqueles jogadores que seria como um Mark Price, um base pequeno, mas inteligente que era capaz de te bater a partir do lançamento ou do passe. É uma pena que tenha passado a carreira toda na ABA, porque muito pouca gente dá valor ao que ele conseguiu alcançar”.

Hubie Brown tem toda a razão no que diz. Apesar disso, Dampier foi reconhecido pelo Naismith Hall of Fame, integrando a turma de 2015 – coincidência ou não, logo a seguir ao primeiro título dos Golden State Warriors de Stephen Curry.

por JOSÉ VOLTA E PINTO [@zevolta97]

Autor

José Volta e Pinto

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