Porta aberta para a Rua: Aterragem abrupta

por set 25, 2019

Os intervalos sem soluços foram ficando maiores. Mas a verdade é que, durante muito tempo, ligava para casa todos os dias, às vezes mais do que uma vez. Não tinha ninguém com quem conversar, principalmente porque a língua era diferente e eu tinha muita dificuldade em expressar-me.

Estou em Toronto pela segunda vez. Já cá tinha estado a visitar algumas universidades para melhor perceber qual seria a mais indicada para os próximos quatro anos. Agora estou aqui para ficar. Digo esta frase quase de ânimo leve, sem compreender o que ela realmente significa. Para uma jovem que fez 18 anos há um mês, quatro anos é muito tempo. É uma questão de aritmética: quatro anos, em dezoito, equivalem a mais de 22% de uma vida. Mas parece que ainda não interiorizei isso.

Começo mal. Num dos primeiros treinos, lesiono-me por não estar habituada ao estilo de jogo mais físico deste lado do Atlântico. Os meus pais, que haviam ficado para a minha primeira semana de treinos, ajudam-me na recuperação. A minha mãe, claramente com maior atenção e mais experiência, pergunta-me:

– Quando nós não estivermos aqui, como vai ser?

Não sei responder àquela pergunta. Nunca estive sem eles. E até então, imaginá-lo era contraditório em si mesmo: inimaginável. Quando ainda estava em Lisboa, criava narrativas inteiras na minha cabeça de como a vida ia mudar – mas para melhor. As dificuldades nunca foram sequer uma ideia ténue. Olhando para trás, agradeço que assim tenha sido. Se tivesse tomado consciência do que seria estar longe, principalmente tão longe, durante muito tempo, principalmente tanto tempo, não teria vindo.

Não gosto de me autointitular de emigrante porque, para além de não ser esse o meu estatuto no passaporte, acho que a sua definição é incompleta. No entanto, é o que me chamam na fronteira, já que o estatuto de “estudante internacional” não é reconhecido isoladamente.

Segundo o dicionário, “emigrante” é aquele que “emigra ou sai da sua região ou do seu país para se estabelecer noutro”. Eu não me conformo com tamanhas frieza e incompletude. Ser emigrante é ser demasiado corajoso para alguém tão receoso como nós próprios. Ninguém sabe verdadeiramente ao que vai quando emigra. Se soubesse, não havia emigrantes.

– Não sei, mãe. Acho que vou ter de me desenrascar sozinha.

E assim foi; só não imediatamente. No dia em que os meus pais regressaram a Lisboa e nos separamos pela primeira vez, chorei como nunca tinha chorado antes. Quando finalmente parava de soluçar, se alguém falasse comigo, desdobrava-me imediatamente em lágrimas de novo.

Foi ficando melhor. Pelo menos, os intervalos sem soluços foram ficando maiores. Mas a verdade é que, durante muito tempo, ligava para casa todos os dias, às vezes mais do que uma vez. Não tinha ninguém com quem conversar, principalmente porque a língua era diferente e eu tinha muita dificuldade em expressar-me.

Passada cerca de uma semana de os meus pais terem ido, recupero da minha lesão e volto aos treinos. Bidiários até as aulas começarem. Sessão de força ou resistência às 7h, treino no campo às 9h, almoço e descanso até às 16h, para recomeçar a aquecer às 16h30. Uma exigência diferente, com quatro treinadores de basquete em cada treino e dois preparadores físicos no ginásio. Condições que nunca tinha visto antes: alimentação (snacks e refeições), roupa de treino lavada e três fisioterapeutas em cada treino.

No entanto, curiosamente, as minhas colegas de equipa queixavam-se e diziam que havia muita coisa que ainda não tínhamos. Tentava pensar que coisas seriam essas, mas nada me ocorria. É tudo uma questão de perspectiva (ou aritmética).

por ANA SOFIA RUA

Autor

Ana Sofia Rua

Subscreva a nossa Newsletter