Porta aberta para a Rua: De volta à classe económica

por dez 18, 2019

Para espanto até do treinador, eu decidi ficar. Se calhar, para o meu próprio espanto também. No final de contas, gosto de acreditar que também somos feitos do que não aconteceu.

Depois de um verão em cheio, com Agosto a começar, era tempo de regressar para mais um ano letivo e uma época desportiva. O novo treinador já tinha sido escolhido e a equipa ia começar a preparar a nova temporada.

Na reunião inicial com o treinador, que já me conhecia por ser adjunto de outra equipa, disse-me que tinha grandes planos para mim e que me via facilmente a jogar profissionalmente depois da Licenciatura. No entanto, após alguns treinos, percebi que o meu papel mudara e que as suas palavras haviam sido meramente ocas. Já não seria a base principal. Havia novas jogadoras e o novo treinador criticava precisamente aquilo que a antiga treinadora mais gostava em mim: o toque europeu, mais focado na técnica e que tende a evitar o contacto físico. Ele queria jogar old-school, sem acessórios “desnecessários”.

Para piorar a situação, lesionei-me novamente e não pude jogar no único torneio de pré-época que teríamos. Tentei focar-me na recuperação para poder regressar ao campo o mais rápido possível, para que a frustração não se apoderasse de mim logo no início da temporada. Foi-me dada permissão para voltar aos treinos no dia em que a época arrancou. Tarde, certamente, mas pelo menos podia regressar.

Não joguei durante vários jogos, mesmo depois de já estar bem fisicamente. Estava a ser muito difícil ganhar a confiança deste novo treinador. Por mais reconfortante que fosse, culpá-lo não mudaria nada. A lesão veio em má altura e eu, à medida que a época avançava e mais jogos eram jogados, mais me afastava do nível das minhas colegas que já levavam quase dez jogos nas pernas. Recuperar dessa desvantagem não ia ser fácil.

E não foi. Tive muito pouco tempo de campo na minha terceira temporada. Inicialmente, foi um choque turbulento. Vinha da minha melhor época desportiva, que havia terminado com uma medalha internacional, e agora estava a bater palmas no fundo do banco (por vezes, sem sequer equipar).

Apesar de na altura não terem sido exatamente estas as condições, já tinha passado por isto. E tinha sobrevivido. Desta vez, não podia ser diferente. Por isso, trabalhei o dobro. Em dia de jogo, se não fosse equipar, ia correr. Em dia de treino, ia para o pavilhão mais cedo para lançar e driblar mais.

No ginásio, pedia aos preparadores físicos para me aumentarem a carga e mesmo quando jogava, fazia extra cardio no fim do jogo – para a eventualidade de ter de jogar mais do que quinze minutos. No Natal, quando fui a casa por apenas duas semanas, pedi um plano físico especial para não ficar novamente para trás.

Infelizmente, nenhum destes esforços me valeu mais tempo dentro das quatro linhas. O treinador já tinha as suas doze e era muito difícil mudar isso. Ia entrando e jogando os “pitty minutes”, mas aquilo não me satisfazia. Chegou ao ponto de jogadoras de outras equipas perguntarem o que se passava comigo, porque os seus treinadores queriam fazer scout e não tinham vídeos/números suficientes. Mais do que uma vez, no fim dos jogos, os treinadores adversários desejaram-me as melhoras das minhas lesões – que, na realidade, não existiam. Contudo, o trabalho nunca é em vão e eu achava que estava a fazer tudo o que estava ao meu alcance.

(Mas este é só o meu lado da história.)

Quase a terminar a época regular, num jogo carregado de emoção, por ser o Pink Game (para aumentar a consciencialização para o cancro da mama), foi-me dada uma oportunidade. A base principal fez duas faltas logo no primeiro período e o treinador, sem outra alternativa, chamou-me daquele que já quase se havia tornado o meu lugar cativo no banco.

Joguei ao nível que me era habitual, surpreendentemente. Chegara a um ponto em que já não me importava com o que o meu treinador (ou quem quer que fosse) podia pensar e por isso, estava descontraída e as coisas saíram naturalmente. No final da partida, alguns elementos da bancada felicitaram-me:

Good to see you out there again!

Eu agradecia com um sorriso, mas no fundo pensava que nunca tinha ido a lado nenhum. Tinha estado sempre ali. Só não tinha tido a oportunidade. Depois disso, contudo, achei que a minha sorte ia mudar e que tinha finalmente mostrado o que era capaz de fazer. Infelizmente, uma vez mais, não foi o caso. Apesar de agora estar sempre entre as doze que equipavam, continuei a jogar muito pouco.

Esse tratamento deu-me perspetiva em relação a muita coisa. Comecei a encarar todos os aspetos da minha vida de outra forma. Tinha estado no topo e agora estava a bater no fundo.

(O Slow J perguntaria: “Topo do quê?” e com razão. Em cálculo, para além do máximo se encontrar da mesma maneira do que o mínimo, pode ser local ou global – e na vida é geralmente difícil saber de qual se trata. Pior do que isso: em Microeconomia, o máximo é atingindo quando qualquer mudança no consumo resulta numa utilidade menor. Isso significa que dali em diante só se pode ficar pior. No fundo, o máximo não é necessariamente bom.)

Essa mudança inesperada ensinou-me a importância de aproveitar os momentos do topo (“Topo para quem?”) e de aprender com o estar no fundo. Podia até pensar que não tinha vindo para isto, mas o basquete nunca tinha sido missão – era apenas consequência. Em tudo o resto, tanto a nível académico, quanto profissional, estava bem. Aliás, estava a ser o meu melhor ano até então. Não podia (nem devia!) queixar-me.

Nesse sentido, em vez de andar triste, comecei a sorrir mais. Aproveitava o que podia controlar e esquecia o que não estava nas minhas mãos. É incrível como essa perspetiva muda tudo. A vida fica mais leve. Era o que era. E hoje não sei lidar com os obstáculos de outra maneira.

(Desconfio até que não haja outra.)

Essa época terminou e nós atingimos um dos melhores resultados de sempre. Fomos apenas eliminadas na última ronda dos playoffs, depois de perdemos por cinco pontos no prolongamento com aquele que seria o campeão nessa temporada, McMaster University. Esta seria a melhor época coletiva, mas de longe a menos bem conseguida individualmente. É uma balança difícil de equilibrar. É óbvio que estava contente com os resultados da equipa, mas sentia que tinha contribuído muito pouco para aquilo, o que não me satisfazia totalmente.

No final da temporada, muitas jogadoras, descontentes com o estilo de treino, abandonaram o programa; no total, nove atletas saíram, reduzindo o plantel a apenas oito corpos. Para espanto até do treinador, eu decidi ficar. Se calhar, para o meu próprio espanto também. No final de contas, gosto de acreditar que também somos feitos do que não aconteceu.

Não foi uma época fácil, mas foi a minha. As dificuldades tornam-nos mais fortes e tenho plena consciência de que foi essa perspetiva de ver as coisas que me deu alento para continuar, mesmo depois de uma época tão desesperadamente malfadada. Sabia que podia mais e não tinha sido assim que tinha imaginado terminar. Embora nada seja como imaginamos, arrisquei.

Depois de um ano tão bem conseguido profissionalmente, foi-me oferecido trabalho durante o verão. Era a única estação do ano que me faltava passar no Canadá. Para além do trabalho, também aproveitei para fazer algumas cadeiras, de modo a acabar a minha Licenciatura mais cedo.

Por coincidência e pela primeira vez na história da equipa, foi também nessa altura que os Toronto Raptors chegaram à final da NBA. Os seis jogos foram vividos com uma intensidade louca na cidade. Da mesma maneira que havia bandeiras portuguesas em cada janela do nosso país durante o Euro 2004, a bola arranhada pelo dinossauro estava por todo o lado nas ruas da capital de Ontário.

Há um sábado em outubro em que as quatro equipas principais da cidade (Blue Jays, Maple Leafs, Toronto FC e Toronto Raptors) jogam em simultâneo. Durante os seis jogos da Final, o ambiente que se vivia era mais ou menos o mesmo do desse dia, com a exceção de que, desta vez, eram apenas os Raptors os protagonistas.

Não só por ter sido em São Francisco (e ver na televisão não é a mesma coisa), mas também por ter frequência de Finanças no dia seguinte, não vi o jogo seis. Muito sinceramente, achava que ainda íamos ao sete e que ia apenas perder uma derrota. Lembro-me de fazer uma pausa rápida no estudo e só ver o marcador final. Fiz refresh na página umas boas oito vezes, para ter a certeza de que era real. Os Toronto Raptors eram campeões da NBA. Não estava tão emocionada como aquando o golo do Éder, mas não desminto que aquilo mexeu comigo.

(Fazendo uma prolepse: o mesmo voltaria a acontecer meses mais tarde, após a vitória da jovem tenista Bianca Andreescu, quando o speaker diz “first Canadian ever” – com especial ênfase na nacionalidade.)

Depois de fazer as cadeiras e pondo em pausa o trabalho por três semanas, com apenas uma mochila às costas, fui para a Costa Oeste do Canadá e dos Estados Unidos. Quando voltei, estive mais uma semana em Toronto e depois voltei a arrancar; desta vez, para a Costa Este canadiana. A sensação de que o tempo deste lado do Oceano estava a esgotar-se fez-me partir à aventura, com medo de que fosse agora ou nunca.

por ANA SOFIA RUA

 

Autor

Ana Sofia Rua

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