Porta aberta para a Rua: Onde é a saída de emergência?

por out 23, 2019

Os meus pais, a Inês e a minha avó foram receber-me ao aeroporto. A curta viagem de dez minutos da Portela até casa vinha sublinhar que tudo estava na mesma, embora muita coisa tivesse mudado. (…) Havia vida para além de mim. Mais: havia vida sem mim.

Parece impossível, mas a concussão passou. Tudo passa.

Era tempo de regressar ao campo e ser finalmente quem era. No entanto, a ausência tão longa, aliada aos nervos e desconhecimento do estilo de jogo, fez-me não estar à altura das minhas próprias expectativas. Jogava pouco, coisa a que não estava habituada, e quando entrava estava nervosa e cometia erros que nem sequer me eram frequentes. Várias más exibições contribuíram para esbater ainda mais a minha confiança e era cada vez mais difícil sair deste loop de más performances.

Sentia que não contribuía. Aliás, sentia até que estava só a atrapalhar. Para tornar tudo ainda mais difícil, estava a passar por um grande choque cultural. Embora as culturas ocidentais tenham várias coisas em comum, também em muitas divergem. Mais do que uma vez, perguntaram-me porque é que eu não sorria. Não era por mal. Só não estava habituada a ser tão cortês como os canadianos. A ideia de que eles pedem desculpa e agradecem a todo o momento não é meramente estereótipo. O povo canadiano é, de facto, extremamente amigável e eu, por ainda não estar totalmente confortável com a língua e também por ser reservada por natureza, passava por ríspida.

Sentia falta de casa. Isso acontecia com alguma frequência. Sempre que problemas surgiam, culpava o facto de estar longe – como se fosse possível a distância ter culpa; e tê-la toda ali. Numa tentativa de combater essa saudade, continuava a ligar muito para casa. No entanto, tinha medo de estar a preocupar os meus pais e nem sempre contava os pormenores todos do que estava a acontecer.

Não sei se é comum aproximarmo-nos de alguém aquando a separação física, mas foi o que aconteceu com a minha irmã. A Inês foi (e é) o meu porto seguro, a minha saída de emergência – e passou a sê-lo só depois de eu vir para aqui. Como os meus pais já estavam suficientemente preocupados, nos dias de maior aperto, era para ela que ligava. É apenas dois anos mais velha do que eu, mas em vários aspetos é um grande exemplo para mim, no sentido em que é o ser humano que eu nunca hei de conseguir ser.

A imagem abaixo ilustra bem a nossa relação: ela por mim. É certamente muito egoísta da minha parte, mas só alguém com o coração dela suportaria isso e muito mais. Desde bebés que somos opostos: a Inês sempre foi a sossegada. Enquanto eu chorava e esperneava, ela sentava-se quietinha e esperava que a tempestade passasse. Ainda hoje assim é. E eu confesso que lhe invejo a calma com que leva a vida. Nesse sentido, ligar-lhe acalmava-me o coração e as ideias. Era como ligar para os meus pais, sem a agravante de os preocupar. Parece um paradoxo, mas a distância também aproxima.

O calendário da época ditou que não jogaríamos em dezembro. Isso deu-me algum tempo e espaço para ganhar mais confiança em treino e voltar a estar ao nível que me era usual. Além disso, no fim desse mês, seria tempo de ir para casa, o que era uma motivação sem igual.

Tive exames até ao último dia possível, 21 de dezembro. Três horas de Estatística Aplicada de manhã para ir apanhar o tão ansiado voo à noite. Lembro-me de ter saído do ginásio (onde escrevemos os exames) e de ter sorrido sem saber porquê. Ia finalmente voltar a casa.

(Na altura, atribuía aquela ânsia toda ao facto de estar a ter uma experiência completamente desprovida de sorte. No entanto, ainda hoje, à medida que o dia de ir se aproxima, a mesma ânsia se desperta. Mas afinal, se estou bem aqui, por que sinto falta do que não está? Sentir falta nem sempre é mau. É bom termos algo que nos relembre qual é o lado certo do coração. Em “O Meu País”, de Diogo Piçarra, esse sentimento é despreocupadamente descrito com o seguinte verso: “[Portugal é] a terra que me prende sem raiz”.)

Antes de aterrar, ao sobrevoar Lisboa, emociono-me. Se pensarmos, o patriotismo é algo muito primário. Gostamos de um país porque nascemos nele, embora nada tenhamos feito por isso. Nesse dia, percebi o que realmente significava.

A prova de que o filósofo escocês David Hume estava certo acerca do Empirismo é materializada assim que vejo a Ponte 25 de Abril: nem a mais intensa ideia supera a mais ténue impressão. Tinha esperado muito por aquele momento – e tinha imaginado como seria – mas nada se compara ao que foi vivê-lo realmente.

Os meus pais, a Inês e a minha avó foram receber-me ao aeroporto. A curta viagem de dez minutos da Portela até casa vinha sublinhar que tudo estava na mesma, embora muita coisa tivesse mudado. Havia obras na 2ª Circular e eu podia jurar que não estavam ali antes (embora a 2.ª Circular esteja sempre em obras!). Havia vida para além de mim. Mais: havia vida sem mim.

É um banho de humildade perceber que nada depende de nós – incluindo aquilo que achámos ser nosso uma vida inteira. Mas eu só tinha 18 anos. Era tudo uma questão de perspetiva (ou de aritmética).

por ANA SOFIA RUA

Autor

Ana Sofia Rua

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