Queria tomar nota do aquecimento de equipa para pensar se faz sentido alterar algo do que as equipas que treino normalmente fazem: a que minuto entram em campo, como começam o aquecimento, que ordem seguem. Queria, mas várias vezes mudei o meu foco para as bancadas. A festa em vermelho tinha começado.
A idade é um posto: diz o ditado popular e dizem os deuses do basquetebol. E quando se está no país do basquetebol, é melhor escutarmos com atenção o que os deuses têm a dizer – caso contrário, há sempre um par de Sergios para nos relembrar.
Como para tantos outros, foi com o génio de Sergio Rodriguez e Sergio Llull que terminou o meu fim-de-semana em Kaunas: três dias em crescendo, que começaram mal mas que terminaram de forma épica – pelo menos para mim, não tanto para o mar vermelho que nasceu na Grécia e foi desaguar ao Báltico.
A temporada do Olympiacos fez do vermelho a cor da esperança e arrastou consigo a fiel legião de adeptos que se fez deslocar de variados pontos da Europa. O meu voo para a Lituânia saiu de Londres e já aí vinham adeptos vestidos de vermelho; estava a mais de 1500km de distância, num país em que o basquetebol nem no Top10 de modalidades entra e já sentia a Final4 a começar.
Para a Lituânia, um país que ama basquetebol, receber uma Final4 foi um presente para os seus habitantes. Vários foram os lituanos com quem falei sobre basket e sobre esta fase final e fosse a conversa pelo caminho que fosse, era certo que iríamos sempre chegar a dois lugares comuns: “O basket é como uma segunda religião na Lituânia” e “Vens de Portugal? Só tu e mais duas pessoas gostam de basket, não?”. Pelo meio, histórias bonitas de como o basquetebol foi muito mais do que um desporto para um povo lituano que se queria libertar da União Soviética e que via nos duelos do Zalgiris e Statyba (agora Rytas Vilnius) e CSKA de Moscovo verdadeiros momentos de demonstração de força e de orgulho próprio.
A equipa de Kaunas não conseguiu chegar às meias-finais, mas Šarūnas Jasikevičius, Rokas Jokubaitis e Donatas Motiejūnas eram motivos mais do que suficientes para que os lituanos sentissem a ligação a alguns dos intervenientes diretos. Aliás, todos eles foram jogadores do Zalgiris e o actual treinador do FC Barcelona e o jogador do AS Monaco nasceram mesmo naquela cidade.
Com todos estes ingredientes, a minha primeira presença numa Final4 da EuroLeague tinha tudo para correr bem. Achava eu.
Tentei entrar na Žalgirio Arena duas horas antes do jogo da meia-final e logo aí começaram os problemas: os leitores de QR code não estavam a conseguir ler o código dos meus bilhetes e tive de ir para o balcão de informações. Pouco tempo depois, mais de uma centena de adeptos estavam à minha volta com o mesmo problema: a sua maioria gregos, que queriam ir para o pavilhão o mais cedo possível para não perderem um segundo da meia-final frente ao AS Monaco.
As diferenças culturais fizeram-se notar. Os lituanos com calma a tentar resolver o problema, a trabalhar atrás de um computador, os gregos num crescendo de ira, queixas e promessas de levar tudo à frente. Os lituanos espantados a dizer que a boa notícia é que ainda faltavam duas horas, os gregos a dizer que “não estão a perceber, nós já devíamos estar lá dentro!”. Nota: foram escolhidas as frases mais educadas e pacíficas.
Com a pressão campo inteira feito pelos adeptos do Olympiacos, lá se arranjou forma de entrar na Arena, mesmo que os códigos continuassem a não ser lidos. Já lá dentro queria prestar atenção ao pré-aquecimento para ver que rotinas individuais andam os jogadores do topo neste lado do Atlântico a fazer. Queria tomar nota do aquecimento de equipa para pensar se faz sentido alterar algo do que as equipas que treino normalmente fazem: a que minuto entram em campo, como começam o aquecimento, que ordem seguem. Queria, mas várias vezes mudei o meu foco para as bancadas. A festa em vermelho tinha começado.
Os primeiros 20 minutos da Final4 foram, para mim, decepcionantes. De tal forma que dei por mim a olhar para os lugares vazios na bancada central e, pior, a olhar para o jogo pelos olhos de treinador e não pelos olhos de adepto, algo que só me acontece quando o jogo não está a ser suficientemente entusiasmante. Isto pode soar estranho dado o meu lado de treinador, mas desde que me conheço que sou adepto de basket, enquanto que treinador só há 15 anos. Sempre que posso, sempre que não tenho de estudar o jogo ou o adversário ou a “minha” própria equipa, gosto de ver o jogo como adepto.
Depois do intervalo tudo mudou: o Olympiacos fez um parcial de 27-2, as bancadas incendiaram-se e a festa continuou até ao apito final…do jogo seguinte! Sim, porque enquanto Real Madrid e FC Barcelona jogavam, a festa nas bancadas continuava a ser feita pelos gregos.
Antes deste jogo, na conversa com um adepto de Madrid (outro que me perguntou o que fazia ali um português) fiquei a saber que tinham sido expulsos dos seus lugares pelos adeptos do Olympiacos que simplesmente ocuparam as secções que quiseram sem que as forças de segurança conseguissem fazer o que fosse. Disseram que se iriam queixar à organização e pedir dinheiro à EuroLeague. Achei engraçado.
No domingo, a festa foi total. Na Avenida da Liberdade em Kaunas, onde não circulam carros, só se via vermelho. Pareciam ser ainda mais do que na sexta. Confirmou-se: entre sábado e domingo tinham chegado cerca de dois mil gregos à Lituânia. Eram eles quem trazia cor e som à festa da EuroLeague.
Tal como na sexta, também no domingo quis ir para o pavilhão duas horas antes: para o caso de voltar a ter problemas com o QR code, mas também para voltar a ver os aquecimentos. Sentei-me na minha cadeira para os dois dias, Sector 332, Fila 13, Lugar 3. Os meus vizinhos lituanos chegaram quando faltavam 15 minutos para começar o jogo e perguntaram o que estava a achar da Final4. Ambos partilhávamos a desilusão com as estratégias de entretenimento da EuroLeague: de forma resumida, uma tentativa de fugir à cultura europeia de amor pelos clubes e de aproximar a uma cultura de entretenimento mais típica do que se vê nos EUA. A identidade, a paixão, o fervor pelos seus clubes são alguns dos principais factores diferenciadores do fenómeno do basquetebol europeu e querer minimizar isso não me parece que seja a solução para o futuro do desporto no nosso continente. É certo que é preciso acompanhar a evolução e adaptar aos tempos correntes, mas há pontos chaves dos quais não se deve fugir.
E enquanto tínhamos esta agradável troca de ideias, vemos muitos pontos vermelhos a começar a correr pelo pavilhão em busca de sítio para se estabelecerem. Isto porque um dos sectores que tinha sido ocupado pelos adeptos do Olympiacos na sexta-feira estavam agora ocupados pela claque do Real Madrid, protegida pelas forças de segurança locais. Claro que os gregos escolheram o sector 332 para se instalar. Uma invasão total àquela zona da bancada que, só foi resolvida passada uma hora, com todos os que ali estavam a terem de ceder os lugares aos adeptos do Olympiacos e a ter de procurar outro lugar no pavilhão.
O que vi eu do jogo do 3.º e 4.º lugar? O aquecimento.
Veio a Final. Um festival de bem lançar para lá da linha de três pontos abriu a partida e com o Olympiacos a sair na frente o ambiente que se fez sentir naquele pavilhão veio tornar mais claro que ir a Atenas ver um Panathinaikos – Olympiacos é um daqueles objectivos de vida que vou ter de cumprir. Podem criar o caos antes do jogo, mas no que toca a apoiar a sua equipa, os adeptos do Olympiacos são um espectáculo tão bom ou melhor do que aquele que os seus jogadores levam a cabo dentro de campo. Ali não há diferenças: há um amor comum pelo clube e não interessa o estrato social, não interessa a cor, a idade, o género – todos vestem de vermelho, todos cantam a plenos pulmões, todos sabem as músicas e as coreografias. Todos se juntam para apoiar o Olympiacos.
O Olympiacos dominou durante grande parte do jogo, mas depois de o Real Madrid ter conseguido encostar ainda na primeira parte, não mais os gregos conseguiram uma vantagem confortável e isso foi aumentando o estado de nervos no pavilhão. A cinco minutos do fim do jogo, com o Olympiacos na frente vi pessoas, no meu novo sector, a chorar e a abraçarem-se; emoções a sair por todos os poros, um hiato de 10 anos que parecia querer chegar ao fim e a cinco minutos de distância de se conseguir.
Os de Madrid começavam a defender melhor e de repente conseguem duas saídas em contra-ataque com vantagem numérica, mas não conseguem concretizar nenhuma delas. Nesse momento achei que o Real tinha deixado passar a oportunidade de ganhar o momento do jogo. Mas a verdade é que, como em tantas outras vezes na vida, estava enganado. O Olympiacos não conseguia marcar, e Sergio Rodriguez fez uma segunda parte absolutamente impressionante. Aliás, marcou-me a calma e a serenidade com que o camisola 13 do Madrid liderou a sua equipa neste jogo do título, mesmo quando parecia que os campeões espanhóis não tinham resposta para dar aos campeões gregos. A partir daquele bloqueio directo central, Chacho descontraiu a defesa do Olympiacos: a finalizar na passada, a encontrar Causeur para mais um triplo, a encontrar Tavares a rolar para o cesto. Ao seu lado andava Sergio Llull. Um distante Sergio Llull que me fez perguntar se não estaria a ter tempo a mais de utilização, tendo em conta o que estava a render. A resposta chegou a três segundos do fim com Llull a fazer o que Llull sempre fez: a resolver quando tem de resolver.
Silêncio total. Ao longe ouvi os adeptos do Madrid a festejar. Pela primeira vez em todo aquele domingo ouvi os adeptos espanhóis. Incrédulos os gregos esperavam que Bartzokas conseguisse sacar um coelho da cartola e que Sloukas repetisse um lance que durante o fim-de-semana passou vezes e vezes sem conta nos ecrãs da arena: o seu buzzer-beater contra o Fenerbahçe nos quartos-de-final.
Mãos na cabeça, t-shirts vermelhas a cobrir lágrimas que escorriam, rostos de desilusão por todo o lado. Incrédulos, sem perceber o que tinha acabado de acontecer. O Olimpo ali tão perto e a esfumar-se uma vez mais e os gregos que minutos antes se preparavam para encher de festa noite de Kaunas acabaram a sair em silêncio, resignados à sorte que os deuses tiveram para lhes dar. Não os do Olimpo, os de Madrid.
por MIGUEL TAVARES [@miguel5tavares]