A desconstrução de um campeão

por out 5, 20240 Comentários

Em Julho de 2023, os Denver Nuggets chegam ao topo da montanha e Nikola Jokic consagra-se entre os melhores jogadores da NBA contemporânea. Quinze meses depois, olhemos para como o franchise do Colorado pode estar a falhar ao seu maior ícone…

“Euphoria”

Na história da liga de basquetebol americana, nenhum campeão é inevitável até o ser. Nenhuma história tem as peças tão perfeitamente alinhadas como no momento que olhamos em retrospectiva. Ninguém está a subir os degraus que levam a um inevitável título até ao momento em que se está encharcado em champanhe e a usar um chapéu foleiro enquanto se tenta segurar uma perversidade de mais de 7kg banhados a ouro.

Em 2020-21, a história dos Nuggets que viriam a ser campeões já estava quase toda escrita. Num espaço de quatro anos, colecionaram através do draft o trio de Nikola Jokic (41.ª escolha de 2014), Jamal Murray (7.ª escolha de 2016) e Michael Porter (14.ª escolha de 2018), e agora o gigante sérvio, depois de uma notória melhoria de condicionamento físico, estava a afirmar-se como um talento geracional e a ter o primeiro ano do que seria a norma desde então: Caminha para o seu primeiro prémio de MVP com uma incrível conjugação de produção individual a alta eficiência, inseparável da melhor distribuição de jogo alguma vez vista na sua posição, e um domínio absoluto das métricas mais avançadas que hoje existem para medir impacto em basquetebol.

ÉPOCAPTS
per 75
AST
per 75
rTS%On-Court Net RatingOn/Off
Net Rating
EPM RankingLEBRON RankingMVP Winner
2019-2023.48.2+3.7+5.4+10.312ºN
2020-2128.48.9+7.3+7.2+6.7Y
2021-2229.78.6+9.7+9.0+19.5Y
2022-2326.410.6+12.3+13.2+24.8N (?!…)
2023-2428.39.6+7.2+12.6+23.7Y
Fontes: Pontos, Assistências e TS% de PBPstats.com; Net Ratings de CleaningTheGlass.com; EPM de DunksAndThrees.com; LEBRON de Bball-index.com; rTS% = TS% – TS% média da NBA.

Tim Connelly, então líder de operações de basquetebol, não hesitou quando percebeu o que tinha em mãos e, no início de 2021, enviou Gary Harris, R.J. Hampton e uma escolha de primeira ronda de 2025 para Orlando como retorno pela aquisição de Aaron Gordon. Este novo quarteto tem vitórias marcantes contra 76ers e Clippers e gera-se um real entusiasmo: Está aqui um grupo que pode alterar as contas da conferência Oeste. Tragicamente, Jamal Murray lesiona-se no joelho quando faltam 50 segundos para terminar um jogo no pavilhão de Golden State e uma lesão desta gravidade, numa fase tardia da época, garantiu que quaisquer ambições dos Nuggets fossem suspensas, não só nos playoffs que se avizinhavam, mas também nos seguinte.

Perder dois anos de uma potencial janela de título na NBA é algo do qual não se consegue recuperar mas mérito para a gestão de Denver que não acusou o pânico e manteve o curso. E é no verão de 2022, confiantes que iriam ter inteiramente de volta os quatro pilares responsáveis por aquelas longínquas duas semanas de sonho, que adicionam Kentavious-Caldwell Pope, por troca, e Bruce Brown, assinando com a Mid-Level Exception. E com a sua visão concluída, é neste verão que Tim Connelly sai do seu posto e assume funções a liderar os Minnesota Timberwolves (começando assim o processo de desenhar a equipa que irá eliminar a sua antiga equipa nos playoffs seguintes).

O resto é história… 

https://youtu.be/OTggq5fGR1k?si=YzMu4jI80GIScMeo&t=277

É importante lembrar que, para além de Jeff Green, nenhum jogador de relevo na rotação dos playoffs passava dos 30 anos de idade. Percebe-se assim o optimismo perante as chances dos Nuggets regressarem, quiçá múltiplas vezes, a este palco ao longo das épocas que se seguiam. No entanto, passados 15 meses da chuva de confetti, a equipa tem visto o talento disponível ficar cada vez mais limitado e já vão-se esbatendo as opiniões que anteveem 2024-25 tendo Denver no mais restrito inner circle de favoritos a repetirem o título de conferência.

Mas se a ascensão se deveu a um conjunto de escolhas corretas, é importante olhar para as decisões tomadas desde então e perceber de que forma os Denver Nuggets podem estar a contribuir para o desperdiçar dos últimos grandes anos de Nikola Jokic.


“Remember, anybody can get it // The hard part is keepin’ it”

Há uma natural maldição de equipas campeãs, pois o talento da equipa valoriza-se pelo sucesso e não é possível num ambiente de cap space limitado manter toda a gente. Para mais, as regras financeiras mudaram com o novo CBA e são mais penalizadoras para grandes folhas salariais. E tudo isto acontece enquanto o resto das equipas está a crescer com os seus próprios jovens talentos (Dallas e OKC como principais exemplos…).

A primeira peça a cair foi Bruce Brown. O “sexto-homem” desta equipa tinha sido uma das partes cruciais da campanha, tendo os Nuggets um melhor saldo de pontos por posse de bola nos seus minutos face a quando estava no banco. Uma presença efervescente em campo, capaz de se colar às movimentações adversárias, contribuir para os ressaltos na posição de base e um fit perfeito ao lado do gigante sérvio devido à sua experiência em pick-and-rolls invertidos e impecável sentido de corte:

Mas Brown tinha apenas assinado um contrato de dois anos garantidos com Denver e encontrava-se agora perante um terceiro ano opcional de contrato a seu critério por valores muito abaixo dos de um role player de elite. A curta duração do vínculo tornava impossível a Denver igualar a astronómica oferta feita pelos Indiana Pacers de 45 Milhões de dólares por duas épocas. É portanto um exemplo de algo fora do controlo da gestão dos Nuggets, não lhes sendo imputável qualquer culpa na situação. 

Algo semelhante ocorreu com a saída de Jeff Green para os Rockets por 8 milhões por época. O veterano que já tinha representado 9 equipas antes da chegada ao posto onde ganharia o seu primeiro anel foi parte essencial da principal alteração na rotação que Mike Malone fez entre o fim da época regular e os playoffs: Não jogar nenhum poste que não fosse Jokic, usando Green e Gordon como dois híbridos de extremo-poste em simultâneo. Denver passou de um Net Rating de -11.6 pontos por 100 posses de bola quando o MVP estava fora de campo para +4.0 pontos!

Net Rating (Saldo de pontos por 100 posses de bola) para Denver em 2023-24 em conjuntos sem Nikola Jokic em campo: Do lado esquerdo na época regular e no lado direito nos playoffs.Fonte: CleaningTheGlass.com

Não é exagero dizer que o valor adquirido nestes minutos foram decisivos na jornada para o título. Para comparação, os Nuggets foram PIORES três pontos por 100 posses de bola nos minutos com o Joker nos playoffs do que na época regular (+13.2 para +10.2).

Mas estas duas saídas dos 6.º e 7.º jogadores com mais minutos nos playoffs deixaram naturalmente um buraco e não parece ter havido nenhum esforço real da parte da organização para o preencher. O caso é particularmente gritante no caso do base já que, entre os lineups que jogaram pelo menos 75 minutos juntos ao longo das últimas duas épocas (das quais ele apenas participou numa), 6 do top 7 conjuntos em termos de Net rating incluem Bruce Brown.

A aparente gravidade da situação foi enfrentada com uma estratégia de free agency que consegue ser em partes iguais conservadora e desconcertante. Se trazer DeAndre Jordan pelo mínimo depois de decidir que ele não tinha lugar na rotação dos playoffs ainda pode ser desculpável por motivos anímicos e de profundidade no fim do banco, tomar uma decisão semelhante com Reggie Jackson já não é tão fácil de racionalizar.

Reggie tinha sido uma adição recente, furto do buy-out market de fevereiro após os Clippers terem gasto uma escolha de segunda ronda para o despachar para Charlotte na troca de Mason Plumlee. Uma tentativa compreensível de trazer um base veterano que estabilizasse o jogo quando Jamal Murray descansa depois da experiência de ‘Bones’ Hyland ter ficado aquém do desejado. Olhando para a sua utilização na postseason, vemos que também não foi solução:

Fonte: Basketball-Reference.com

Esse papel começou a ser distribuído pelo já referido Bruce Brown e por Christian Braun, um rookie que ganhou a confiança do treinador.

Mas os Nuggets não só trazem Jackson de volta como o fazem utilizando a Tax-Payer Mid Level Exception – a única ferramenta que possuíam para assinar alguém acima do contrato mínimo. Agravado ainda por lhe darem um segundo ano como opção do jogador! Isto levanta uma simples questão (que infelizmente irá passar a ser recorrente): Com quem é que eles estavam a competir para fazerem uma oferta destas?! O que leva esta equipa a gastar uma preciosa ferramenta contratual num jogador que se tinha revelado inutilizável nos momentos mais cruciais?… E ainda atirar para cima um segundo ano garantido para que o jogador tenha segurança caso o fenómeno se repita?! Este é o tipo de decisão que faz com que se tenha perdido duas peças em troca de absolutamente nada.

É apenas justo apontar que nesta fase houve de facto uma visão agressiva de preencher o resto do plantel através do draft, já que os Nuggets distribuíram duas escolhas de primeira ronda futuras para trazer um total de três jogadores no draft de 2023. A aposta era que o desenvolvimento interno de Braun e Peyton Watson, em conjunto com estes recém-chegados que incluíam Julian Strawther e Jalen Pickett, fossem colmatar as duas sonantes saídas. Um peso considerável para colocar num conjunto de jogadores jovens cujas posições de selecção no draft indicariam que metade nem chegaria ao segundo contrato em situações normais.

Mas foi nesse princípio que Denver se apresentou para defender o título.


“Even a small lighter can burn a bridge”

É possível que Zeke Nnaji seja um jogador anónimo para a maioria das pessoas que estão a ver jogos dos Denver Nuggets nos playoffs. Há razões para tal. Recordando os dados acima sobre o salto dos grupos em Jokic nos playoffs, Nnaji é um nome que aparece frequentemente na primeira tabela, representando a época regular, mas encontra-se completamente ausente da segunda.

O que, infelizmente, não faz dele uma parte menos relevante na nossa história! Afinal, a primeira grande decisão da época de 2023-24 por parte de Denver foi renovar com Nnaji, que estava prestes a terminar o seu contrato de rookie.

A renovação é finalizada por 32 milhões de dólares distribuídos por 4 anos, no qual o último é opção do jogador.

Imagens reais dos Denver Nuggets em Outubro de 2023

É necessário contextualizar este contrato, até porque o que ainda está para vir não pode ser separado deste momento e desta decisão. Postes suplentes com impacto posicional muito abaixo da média são jogadores de salários mínimos na NBA, mas Zeke Nnaji está prestes a iniciar uma época em que irá receber mais de três vezes esse valor! Jose Alvarado, um excelente base que faz parte do banco dos New Orleans Pelicans, acaba de renovar por metade deste valor anual e apenas por duas épocas. Isto é a comparação dos dois jogadores no que toca ao impacto medido pelas principais métricas avançadas (EPM, LEBRON e DPM):

A principal justificação desta generosa oferta será conseguir um salário que possa ser utilizado como “enchimento” para trocas, facilitando o processo de emparelhar salários sem ter de incluir jogadores importantes na rotação. Ou seja, o tipo de contratos que o analista Danny LeRoux tão sucintamente apelidou de “Human Trade Exceptions”.

Mas é aqui que beneficiamos da distância temporal para saber que Nnaji não só continua no plantel à data da escrita deste artigo, como é agora o 5.º maior salário de uma equipa que irá deixar uma peça crucial sair exclusivamente por motivos financeiros! É impossível olhar para decisões motivadas pela ideia de evitar a todo custo entrar na tão temida second apron e questionar o gastar de quase 9 milhões de euros num jogador que não vai na generalidade contribuir para ganhar jogos de basquetebol.


“How Much A Dollar Cost?”

O percurso dos Nuggets de 2024 não chegou ao mês de Junho, sendo eliminados num incrível jogo 7 contra os Minnesota Timberwolves. O lançamento triplo não surgiu na série, Jamal Murray estava ainda diminuído fisicamente, faltou profundidade quando Christian Braun e Peyton Watson não conseguiram ser ameaças reais na vertente ofensiva e uma equipa desenhada especificamente para defender para o propósito cumpriu a sua missão de eliminar os campeões em título.

Mas “não repetir o título” é sempre o resultado mais provável – ainda para mais numa altura em que há paridade e distribuição de talento como não existia há décadas. Não se pode fazer mais do que maximizar as probabilidades para cada tentativa e Denver podia encarar a offseason contando com o melhor jogador no planeta e um dos mais eficazes cincos iniciais da NBA nos últimos dois anos.

O que nos traz ao momento em que um dos bases desse grupo, Kentavious Caldwell-Pope, aceita uma oferta dos Orlando Magic por 66 milhões de dólares ao longo de três anos. KCP é um dos melhores navegadores de bloqueios na sua posição e um respeitável lançador dinâmico, tendo concretizado 42% dos seus lançamentos de três pontos durante o seu tempo em Denver. Sendo o principal defesa no ponto de ataque desta equipa, era de fácil encaixe com as suas estrelas, mas são essas mesmas características que o tornam extremamente portátil para qualquer outro contexto.

Os Nuggets têm a possibilidade de apresentar valores maiores para o reter mas recusam-se a fazê-lo pelas implicações financeiras, levando a que três jogadores do top 7 responsável pelo campeonato tenham saído no espaço de um ano. E por isso já não é possível para esta equipa apresentar um único grupo todo composto por jogadores de alto nível na sua posição.

E é na resposta a esta grave lacuna que os responsáveis pelo franchise parecem determinados a abandonar toda a razão…

Reggie Jackson acciona o ano de opção no seu contrato porque mais uma vez teve uma performance fraca na postseason e seria a única maneira de receber um contrato acima do mínimo. A decisão do verão anterior, que já era ruinosa no momento em que foi feita, levou os Nuggets a gastar três futuras escolhas de draft de segunda ronda para se livrarem deste contrato.

Determinados a repetirem esse erro, entregam o mesmo contrato a Dario Saric, que acabou por ser exorcizado da rotação dos Warriors no fim da época passada. E assim, novamente, a Tax-Payer Mid-Level Exception é utilizada para trazer um jogador que em nenhum cenário iria receber este tipo de valores. E a aquisição de Russell Westbrook pelo contrato mínimo, no esforço de arranjar um novo base veterano para o banco, é também pontuada com uma opção para o jogador no ano seguinte. Sinto-me obrigado a perguntar de novo: Com quem é que eles estavam a competir?!

No cúmulo desta sensação de déjà vu, DeAndre Jordan regressa também com um ano novo no contrato pelos mesmos motivos de cultura de balneário que já foram a motivação chave da outra vez. Mas parece que a protecção dessa cultura é importante apenas até ao momento em que se arrisca ter de pagar “demasiado” a quem determina muito mais o sucesso da equipa.

Para resumir o problema, estamos perante um franchise que simultaneamente tenta contar cada tostão para se manter abaixo de um certo nível salarial enquanto atira para o lixo qualquer recurso de construção de plantel em jogadores que nem sequer conseguem jogar 10 minutos num jogo em Junho.


“Getting Shaded Under A Money Tree”

É possível que ao revisitar este tópico daqui a um ano que isto não passe de uma tempestade num copo de água. Que Nikola Jokic continuar a espalhar magia com Jamal Murray de volta ao pico dos seus poderes possa por si só sobrepor-se a qualquer limitação ao seu redor.

Mas para os Nuggets o apertar do cinto não acaba aqui… A renovação de Aaron Gordon está pendente e irá entrar nas contas a partir de 2025 – parte do motivo pelo qual eles hesitaram em pagar a KCP.  E quando a diferença entre 25 ou 30 milhões anuais para o Aaron Gordon pode também ser a diferença entre uma renovação ou a saída para outra equipa, gastar quase 14 milhões em Dario Saric e Zeke Nnaji situa-se algures entre o negligente e a auto-sabotagem.

Quanto mais limitada é a flexibilidade, mais importante são as decisões nas margens do plantel e da folha salarial e Denver tem sistematicamente falhado neste departamento. E isto enquanto tem as decisões principais motivadas por poupança financeira em vez de sucesso dentro de campo.

Porque na verdade, havia caminhos alternativos. É possível argumentar que, na janela do pico de carreira de Jokic, justifica começar o relógio da second apron no imediato e lidar com qualquer problema no futuro – numa altura em que mais um ataque ao título pode até criar outra visão sobre qual a peça mais dispensável para ajustar contas. Potencialmente o contrato que se prefere “partir” em peças menores podia ser o de Michael Porter ou Aaron Gordon pode começar a mostrar sinais de declínio físico com o passar dos 30…

Mas foi também Danny LeRoux que sempre disse que um bom dono é a maior vantagem competitiva de qualquer equipa. É a minha opinião que, quando se tem uma equipa candidata ao título em mãos, qualquer entidade que não esteja disposta a gastar o que for preciso não reúne as condições para ser dona de um franchise. Seria até do interesse da própria liga, enquanto empresa a vender um produto, que quem não esteja disposto a tal reconheça que devia vender a equipa.

Numa liga onde os eternamente medíocres são ridicularizados e se faz piadas sobre a falta de rumo dos Chicago Bulls ou como os Washington Wizards são o equivalente do território das hienas no Rei Leão, fica a questão se o maior crime contra o basquetebol é não fazer tudo o possível para aproveitar o talento geracional de um dos melhores jogadores ofensivos de sempre.

Isto é acima de tudo um ataque a donos que amarram quem trabalha para eles a uma filosofia. Estamos perante uma equipa campeã a ser desmantelada aos poucos, numa ilusória esperança que veteranos sem lugar e talentos do fim do draft possam ser o suficiente para um Sérvio mágico produzir um novo milagre. Tudo para manter bolsos de multimilionários o mais cheios possíveis e uma melhor escolha de draft numa altura em que o Jokic já deve estar apenas a tomar conta de cavalos.

Não se entende.

Autor

Martim Pardal

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