LeBron James não é o GOAT

por jan 10, 2024

Numa sessão de perguntas e respostas, alguém lança as seguintes questões a Carl Sagan: “- Qual é a sua religião? Tem algum tipo de Deus? Algum propósito?”. Sagan devolve “- O que é que quer dizer com a palavra Deus?”. E a plateia desata a rir. Esta entrada serve para dar o tom ao que se vai seguir. E que é, nada mais nada menos, do que uma tentativa de compreender a conversa em torno de duas ideias: 1) há um GOAT; e 2) como é que se atesta que esse dito GOAT existe.

Mas voltando a Sagan. Após uma pequena troca de palavras e mais algumas risadas, o interlocutor do Professor Carl acrescenta que “ao longo do tempo, os humanos criaram uma espécie de figura mitológica que envolve quase sempre a ideia de um poder espiritual superior. E como vamos conhecendo e sabendo mais, começa a parecer cada vez mais difícil provar que uma figura deste tipo possa realmente existir. Onde é que isto nos deixa?”. “Deixa-nos por nossa conta!”, dispara Sagan e desta vez não há́ risos na plateia. Há́ aplausos.

Não haverá certamente registos da primeira conversa a versar sobre o maior ou melhor de qualquer coisa. Haveria um GOAT antes de Bill Russell ou Dr. J? Haveria um GOAT antes de Pelé ou Maradona? Haveria o melhor bolo de chocolate do mundo ou a melhor torrada do universo antes dos primeiros idiotas terem registado estas marcas? E a melhor barbearia? E o melhor electrodoméstico? Tudo isto são questões muito complexas e que só são possíveis de responder graças, em parte, aos sistemas de opiniões e de pontuações outrora criados por Homens muito magnânimos que povoaram o planeta muito antes de nós. E estes sistemas servem para que outros Homens, os que se inquietam com estas coisas, convençam outros Homens, aqueles que estão à beira de se inquietarem, de que a escolha certa está em optar pela coisa com mais estrelinhas, com melhor média de estrelinhas, e com o maior número de opiniões favoráveis. Os gurus da persuasão dirão, julgo eu, que a melhor forma de vender um produto é pela opinião favorável de um cliente que, estando tão satisfeito, se sente impelido a convencer os outros de que aquele é de facto o melhor que há.

Sagan volta ao ataque: “A palavra Deus serve para descrever uma panóplia de ideias. Desde um descomunal homem de pele clara, com uma longa barba branca, sentado num trono (..) até ao tipo de Deus – que não é um Deus – que Einstein descrevera que é algo próximo da junção de todas as leis do Universo. Eu seria tolo se negasse estas leis do Universo e se é a isto que querem chamar Deus, então Deus existe (…) Portanto, se me perguntam se Deus existe e eu respondo ‘que sim’ ou ‘que não’, ficamos todos a saber o mesmo (…) Qual a razão para usarmos uma palavra tão ambígua que pode significar tantas coisas diferentes (…) que te dá a liberdade para parecer que concordas com alguém com quem não concordas. Ajuda na socialização, mas não é uma ajuda em busca da verdade. Por isso, acho que precisamos de linguagem muito mais afinada quando estamos a debater estas questões.”

O título, já terão certamente percebido, foi propositadamente pensado para caçar cliques. Bom, assim que há umas semanas escutei Damian Lillard a falar de Michael Jordan no podcast Knuckleheads, lembrei-me automaticamente desta palestra do Carl Sagan. Na conversa com Quentin Richardson e Darius Miles, Lillard fala de Jordan como se este fosse um Deus: “Quando eu era mais novo, Kobe e LeBron atraiam todas as atenções durante os All-Star. Mas deste vez a atenção estava em Magic, Kareem. E mais tarde chegou o MJ e havia mais câmaras apontadas a ele do que a todos nós. E é aí que vês a diferença e que pensas ‘este gajo é o GOAT’. Ele só́ a andar de um lado para o outro e toda a gente a observá-lo”, conta o jogador dos Bucks, referindo-se ao que acontecerá no All-Star que juntou os 75 melhores jogadores da história da NBA.

Lillard, que é um dos mais talentosos da sua geração, descreve muito bem o problema que nos trouxe até aqui. Para ele, o GOAT existe e chama-se Michael Jordan. Ele vai mais longe e explica que chegou a essa conclusão depois de ver todos os operadores de câmara apontarem as lentes para Jordan. E assim, sem aviso prévio, Lillard elege o GOAT e apresenta forma de atestar a sua escolha. Impressionante. Queimem-se todas as listas que as revistas, jornais e outros reciclam todos os anos desde ~2010 para cá.

Tudo isto levanta outra questão que poderá ficar para outro dia, mas a verdade é que nunca ninguém viu Deus e Michael Jordan na mesma sala… E é por estas que LeBron James nunca será o GOAT. Jordan carrega consigo uma carga mitológica com mais de 30 anos – o homem controla os operadores de câmara, caramba! Consta que um dia terá caminhado sobre a água. E que até terá transformado o líquido inodoro e incolor de Chicago em vinho frisante da região de Champagne, e mais tarde em Tequila.

Mas isto ainda não acabou. A conversa pode tomar contornos ainda mais ridículos, tanto que nos últimos tempos há audazes que se lançam para outra discussão: o melhor de sempre vs. a melhor carreira de sempre. Ou seja, não bastava perder tempo a decifrar quem é Deus, agora também se tenta discutir quem dava as melhores missas. Acho que nem o céu será o limite para estas parvoíces.

Na conversa parcialmente transcrita no início, fica mais ou menos claro para os interlocutores que existirá na natureza humana a necessidade de o Homem ter uma figura, um Norte. E ambos acabam por reconhecer que este pode assumir diversas formas, seja pela força do mito ou pela força do consenso científico. E eu atrevo-me a acrescentar que será assim na discussão sobre a origem do Universo e na discussão em torno do melhor qualquer-coisa de sempre. A ciência que nos vai permitindo encontrar algumas respostas para as questões mais complexas do universo é “a mesma” que nos permite olhar para outras discussões, até as mais mundanas como esta que nos traz até aqui, com alguma racionalidade. Defina-se então, racionalmente, o que é ser GOAT. É ganhar mais campeonatos e títulos individuais? É ter mais câmaras apontadas? Mais pontos marcados? Mais jogos jogados? Melhores médias? Melhores estatísticas? Mais capas de videojogos? Mais sapatilhas vendidas? Não há consenso sobre isto. Nunca haverá. E Kevin Durant, há uns anos, também deu uma pincelada no tema, colocando a técnica como o fator que é, no seu entender, mais importante na conversa. Ora, para uma discussão que não nos leva a lado algum, nada melhor do que lhe acrescentar outra camada carregadinha de subjetividade. Calma que ainda falta juntar a este caldeirão os olhos de quem vê, ou seja, daqueles Homens inquietados que estão mortinhos por inquietar outros Homens. Esta porcaria parece um esquema de pirâmide.

Mas coloquemos então todos os dados que há num formulário e aguardemos pelo resultado [escuta-se por esta altura o som das gigantes ventoinhas de um supercomputador a processar todos os dados]. Aqui está ele [ruído de uma impressora 3D a desenhar uma figura de um jogador de basquetebol à escala real]. “- Este é o GOAT!”, anuncia o anunciador. “- Calma! Este é o GOAT, mas é o GOAT à luz dos dados que conseguimos obter e analisar ao dia de hoje.”, conclui um indivíduo qualquer munido de recortes de jornais e de um caderno carregadinho de fórmulas matemáticas.

Bom. Encarem isto como um grito de revolta de início de ano, para que seja a última vez que esta discussão se tenha em locais que não sejam apropriados. E o único local apropriado para isto é um café, que é onde se esgrimem argumentos sobre os temas mais fraturantes da humanidade. É que, bem vistas as coisas, LeBron James também já faz Tequila.

Autor

Diogo Santos

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