Porta aberta para a Rua: O regresso às altitudes

por nov 6, 2019

Poucos dias antes de regressar a casa, tenho a reunião habitual de final de época, onde os quatro treinadores e os três preparadores físicos reúnem com cada uma das atletas. Sentei-me com os sete em frente e todos sorriam. Disseram-me que não acreditavam no que tinha acontecido.

As férias em casa foram curtas e passaram a voar. Dia 27 de dezembro, menos de uma semana depois de ter chegado a Lisboa, já estava de mochila às costas novamente. Era tempo de regressar a Toronto. Apesar de as aulas só começarem em janeiro, os treinos não paravam.

(Regressar foi uma sensação estranha. Era a primeira vez que aterrava em Toronto sozinha. Lembro-me de ter sorrido. De certa forma, agora também tinha casa ali. Miguel Torga, no poema “Fernão de Magalhães”, escreve precisamente sobre isso: “Ter um destino é não caber no berço onde o corpo nasceu. É transpor as fronteiras uma a uma e morrer sem nenhuma…”)

Devido ao ar pressurizado do avião e provavelmente com a ajuda dos invernos rigorosos do Canadá (não é por acaso que nos chamam The True White North…), antes da segunda parte da época começar, adoeci uma vez mais.

Tudo fazia crer que este não ia ser o meu ano. De tal forma que a minha treinadora até admitiu ter pensado que eu já não regressava depois do Natal, porque, segundo ela, “No one walking in my shoes would’ve kept moving“. Mas eu não tinha outra alternativa. Além disso, o desconforto de desistir era maior do que a exigência de continuar.

O fim da época aproximava-se. Devido ao curto plantel com que havíamos começado a época (apenas dez jogadoras), a equipa estava cansada e as lesões começaram a surgir com cada vez mais frequência. Uma vez que já tinha tido a minha dose, escapei-me a um surto de lesões que reduziu a equipa a apenas seis corpos. Com poucas soluções, a treinadora não tinha outra alternativa a não ser pôr-me no campo. Desta vez, o medo do erro estava reduzido, já que não havia quem me substituísse. Voltei a sentir-me confiante com a bola nas mãos. Quase em vias de não nos qualificarmos para os playoffs, ganhámos três jogos consecutivamente, o que nos punha de volta à corrida. E eu sentia que estava finalmente a ajudar a equipa.

Por auxílio de terceiros, acabámos por ter o primeiro jogo dos playoffs em casa. Tal não acontecia desde 2012. As bancadas estavam cheias. Desta vez, éramos sete, mas a nossa base principal, que alinhava pela Seleção Nacional como cinco inicial, estava ainda em protocolo de concussão e não ia poder jogar. Sabíamos que era uma batalha difícil. Já tínhamos defrontado a Lakehead University duas vezes durante a época, tendo perdido uma e ganho outra. Estava tudo em aberto e os playoffs são sempre uma verdadeira roleta russa.

Jogamos até as pernas não correrem mais. Foi um verdadeiro esforço coletivo para continuar a correr depois do segundo período. Lutámos até ao fim contra aquilo que parecia ser um exército de doze jogadoras, obviamente mais frescas do que nós. Infelizmente, não conseguimos chegar à vitória.

Apesar da derrota, fui Player of the Game. Pela primeira vez. No último jogo da época. Na entrevista antes de ir para o balneário, perguntaram-me:

– You guys barely had subs. What made you keep going?

Na altura, cuspi uma palavras entre as recuperações de fôlego, mas mais tarde percebi o que tinha realmente sido. Era a vontade de mostrar mais, de ser melhor e de que aquele não fosse o último, mas o primeiro jogo da época. Queria ter começado assim. Queria que só me tivessem conhecido assim.

Não é possível voltar atrás. E pensando bem, talvez ter passado por todas aquelas peripécias, naquela que foi uma primeira aterragem atribulada, fosse necessário. É preciso passar pelos motivos da revolta para se ser revoltado. Se não tivesse começado tão mal, se calhar também não teria acabado tão bem.

Tinha tudo para desistir. (E ainda hoje encontro razões para o fazer). Angela Duckworth e Patrick Quinn, do Departamento de Psicologia da Pennsylvania University, desenvolveram um ensaio sobre os fatores que melhor prevêem o sucesso. Foi apurado que a inteligência e o talento são fatores significativos, mas não os mais importantes. Duckworth e Quinn concluem que o principal preditor do sucesso é a persistência. Esta sensação de que o meu trabalho estava longe de estar terminado fez com que continuasse. Até porque o meu trabalho tinha apenas acabado de começar.

Antes de voltar a Portugal e depois da época terminar, foi tempo de nos dedicarmos ao ginásio. Já não estávamos in-season e a carga podia aumentar sem o risco de nos cansarmos para os jogos. Todos os dias, havia circuitos diferentes, desafios maiores. Considero o trabalho de ginásio particularmente difícil, mas nem por isso deixo de lhe reconhecer o valor que tem. No entanto, o seu retorno é demorado e a falta de imediatismo torna uma hora de ginásio mais exigente e desgastante do que duas horas de bola. Costumo dizer que odeio cada minuto do durante e adoro cada segundo do após.

Poucos dias antes de regressar a casa para o verão, tenho a reunião habitual de final de época, onde os quatro treinadores e os três preparadores físicos reúnem individualmente com cada uma das atletas. Sentei-me com os sete em frente e todos sorriam. Disseram-me que não acreditavam no que tinha acontecido:

– From years of experience, we haven’ t seen many girls with this drive. If you keep it up, we can make you the best point guard in the league before your fourth year.

Aquelas palavras ecoaram em mim durante vários meses, repeti-as como uma mantra, numa tentativa de as aceitar, mas ainda hoje não consigo fazê-lo – até porque elas nunca chegaram a concretizar-se. No entanto, a verdade é que elas resumem bem a realidade (pelo menos, a primeira parte). Não sou alta, particularmente rápida, nem tenho uma estrutura corporal que me permita desenvolver músculos por aí além. Tenho a cabeça, o cérebro, o drive. (Talvez por isso me prenda tanto aos livros e aos números. Esses, sim, podem ensinar-me e catapultar-me a ser melhor).

Odeio promessas e é raro fazê-las, mas comprometi-me com o trabalho, por saber que era a única maneira de fazer daquelas palavras mais do que isso. Desta forma, percebi que a parte difícil não está em ser o melhor – até porque nunca estive sequer perto disso. O difícil é continuar a sê-lo.

por ANA SOFIA RUA

 

Autor

Ana Sofia Rua

Subscreva a nossa Newsletter