Os meus pais, a Inês e a minha avó foram receber-me ao aeroporto. A curta viagem de dez minutos da Portela até casa vinha sublinhar que tudo estava na mesma, embora muita coisa tivesse mudado. (…) Havia vida para além de mim. Mais: havia vida sem mim.
Parece impossível, mas a concussão passou. Tudo passa.
Era tempo de regressar ao campo e ser finalmente quem era. No entanto, a ausência tão longa, aliada aos nervos e desconhecimento do estilo de jogo, fez-me não estar à altura das minhas próprias expectativas. Jogava pouco, coisa a que não estava habituada, e quando entrava estava nervosa e cometia erros que nem sequer me eram frequentes. Várias más exibições contribuíram para esbater ainda mais a minha confiança e era cada vez mais difícil sair deste loop de más performances.
Sentia que não contribuía. Aliás, sentia até que estava só a atrapalhar. Para tornar tudo ainda mais difícil, estava a passar por um grande choque cultural. Embora as culturas ocidentais tenham várias coisas em comum, também em muitas divergem. Mais do que uma vez, perguntaram-me porque é que eu não sorria. Não era por mal. Só não estava habituada a ser tão cortês como os canadianos. A ideia de que eles pedem desculpa e agradecem a todo o momento não é meramente estereótipo. O povo canadiano é, de facto, extremamente amigável e eu, por ainda não estar totalmente confortável com a língua e também por ser reservada por natureza, passava por ríspida.
Sentia falta de casa. Isso acontecia com alguma frequência. Sempre que problemas surgiam, culpava o facto de estar longe – como se fosse possível a distância ter culpa; e tê-la toda ali. Numa tentativa de combater essa saudade, continuava a ligar muito para casa. No entanto, tinha medo de estar a preocupar os meus pais e nem sempre contava os pormenores todos do que estava a acontecer.
Não sei se é comum aproximarmo-nos de alguém aquando a separação física, mas foi o que aconteceu com a minha irmã. A Inês foi (e é) o meu porto seguro, a minha saída de emergência – e passou a sê-lo só depois de eu vir para aqui. Como os meus pais já estavam suficientemente preocupados, nos dias de maior aperto, era para ela que ligava. É apenas dois anos mais velha do que eu, mas em vários aspetos é um grande exemplo para mim, no sentido em que é o ser humano que eu nunca hei de conseguir ser.
A imagem abaixo ilustra bem a nossa relação: ela por mim. É certamente muito egoísta da minha parte, mas só alguém com o coração dela suportaria isso e muito mais. Desde bebés que somos opostos: a Inês sempre foi a sossegada. Enquanto eu chorava e esperneava, ela sentava-se quietinha e esperava que a tempestade passasse. Ainda hoje assim é. E eu confesso que lhe invejo a calma com que leva a vida. Nesse sentido, ligar-lhe acalmava-me o coração e as ideias. Era como ligar para os meus pais, sem a agravante de os preocupar. Parece um paradoxo, mas a distância também aproxima.
O calendário da época ditou que não jogaríamos em dezembro. Isso deu-me algum tempo e espaço para ganhar mais confiança em treino e voltar a estar ao nível que me era usual. Além disso, no fim desse mês, seria tempo de ir para casa, o que era uma motivação sem igual.
Tive exames até ao último dia possível, 21 de dezembro. Três horas de Estatística Aplicada de manhã para ir apanhar o tão ansiado voo à noite. Lembro-me de ter saído do ginásio (onde escrevemos os exames) e de ter sorrido sem saber porquê. Ia finalmente voltar a casa.
(Na altura, atribuía aquela ânsia toda ao facto de estar a ter uma experiência completamente desprovida de sorte. No entanto, ainda hoje, à medida que o dia de ir se aproxima, a mesma ânsia se desperta. Mas afinal, se estou bem aqui, por que sinto falta do que não está? Sentir falta nem sempre é mau. É bom termos algo que nos relembre qual é o lado certo do coração. Em “O Meu País”, de Diogo Piçarra, esse sentimento é despreocupadamente descrito com o seguinte verso: “[Portugal é] a terra que me prende sem raiz”.)
Antes de aterrar, ao sobrevoar Lisboa, emociono-me. Se pensarmos, o patriotismo é algo muito primário. Gostamos de um país porque nascemos nele, embora nada tenhamos feito por isso. Nesse dia, percebi o que realmente significava.
A prova de que o filósofo escocês David Hume estava certo acerca do Empirismo é materializada assim que vejo a Ponte 25 de Abril: nem a mais intensa ideia supera a mais ténue impressão. Tinha esperado muito por aquele momento – e tinha imaginado como seria – mas nada se compara ao que foi vivê-lo realmente.
Os meus pais, a Inês e a minha avó foram receber-me ao aeroporto. A curta viagem de dez minutos da Portela até casa vinha sublinhar que tudo estava na mesma, embora muita coisa tivesse mudado. Havia obras na 2ª Circular e eu podia jurar que não estavam ali antes (embora a 2.ª Circular esteja sempre em obras!). Havia vida para além de mim. Mais: havia vida sem mim.
É um banho de humildade perceber que nada depende de nós – incluindo aquilo que achámos ser nosso uma vida inteira. Mas eu só tinha 18 anos. Era tudo uma questão de perspetiva (ou de aritmética).
por ANA SOFIA RUA