A verdade é que há algo de tranquilizador em estar entre as quatro paredes que me viram crescer. Vivi naquela casa a minha vida inteira. Aliás, os meus pais mudaram-se para lá precisamente porque eu ia nascer. Muitas vezes, após o regresso e ainda de mala por desfazer, sento-me aos pés da cama e fico apenas em silêncio no meu quarto. É terapêutico. Quase como se estivesse a aproveitar de uma vez só todos os silêncios que não tive ali.
Depois do Natal, a segunda parte da época, em termos coletivos, foi menos feliz do que a primeira. Por causa disso, no final da temporada, todo o staff técnico foi mudado. Era preciso um novo começo e os diretores desportivos da Universidade queriam mudar os projetos de basquetebol – tanto feminino, como masculino (embora o treinador da equipa masculina só estivesse a deixar a Universidade para se tornar treinador-adjunto dos Raptors 905).
O nosso novo treinador demorou a chegar. Passou-se o período de exame de Inverno, um mês especialmente lento para mim. Aqui vai-se a exame a tudo, independentemente da performance durante o semestre. Ao contrário da maior parte dos alunos, não estudo muito durante o período de exames. É demasiado em cima do momento de avaliação, o que apenas me confunde e desassossega. No entanto, tenho sempre algum azar no calendário e fico até aos últimos dias. Nesse ano, não foi exceção. Fiquei até ao último exame possível. Dia 25 de abril, das 19h às 22h. Três horas de Econometria para, no dia seguinte, ir para o aeroporto e regressar a Portugal.
Passou-se quase um ano. Mais especificamente, nove meses e 24 dias – mas quem é que está a contar, não é? Normalmente, chego com muita antecedência ao aeroporto (a ansiedade não permitiria que fosse de outra maneira). No entanto, desta vez, atraso-me e perco o comboio de ligação da Baixa ao Pearson. Espero 30 longos minutos, mas lá me despeço de the 6ix. Tive a sorte de estar no shuttle como uma assistente de bordo que também parecia estar atrasada. Ao chegarmos à estação pretendida, segui-a na sua pressa e usei o seu conhecimento do aeroporto para rapidamente chegar ao Terminal 1.
Igualmente atrasado, à minha frente na fila para o check-in, estava um senhor inglês, com uma inconfundível e carregada pronúncia britânica. Parecia atrapalhado e pediu desculpa várias vezes por estar tão em cima da hora. Os assistentes de bordo do outro lado do balcão riam:
– We are Portuguese, there’ s no rush.
Mas o senhor não descansava. Antes de entrarmos no avião, aproximou-se de mim e perguntou se isto era normal. Era quase hora de partida e ainda não tínhamos entrado na aeronave.
– Don’ t worry – disse-lhe – We’ll get there.
Gosto de aeroportos e os aviões não me assustam. Há também um fenómeno muito engraçado que acontece cada vez que voo numa companhia aérea portuguesa: à medida que se vão passando as várias fases do embarque (e.g., check-in, segurança, etc.), a língua portuguesa é cada vez mais nítida. Em chegando à porta de embarque, é quase impossível ouvir qualquer outra língua (a menos que senhores ingleses preocupados nos abordem). Às vezes, até é anunciada a distribuição de jornais Correio da Manhã. Aí, sim, sei que estou mesmo a chegar.
Aterrar em Lisboa não é como aterrar noutras cidades. O nosso aeroporto é muito central, é fácil identificar vários pontos de interesse durante a aterragem. Por isso, vou sempre do lado esquerdo, à janela, para poder ver o lado do Padrão dos Descobrimentos e apreciar a vista (finalmente real) que tenho em fotografia na parede do quarto, durante o ano inteiro.
Há várias coisas que quero fazer quando chego. Normalmente, faço uma lista, mas há duas ou três que nunca mudam. A primeira, obrigatória, é ir ao mar. Para além de ajudar com o jetlag, é algo que não tenho durante o ano todo.
Toronto tem o Lago Ontário, é certo. Aliás, é um Lago tão grande que até se perde de vista e, não fosse a falta de ondas, passaria por mar facilmente. Contudo, não cheira ao mesmo. O cheiro a mar, tão intrincado no olfato lisboeta, é dado como garantido. E é verdade que não se nota quando não se tem. É o voltar a senti-lo que faz toda a diferença.
Vários artistas, aquando visita do país, brincam em entrevistas e perguntam como é possível alguém trabalhar em Lisboa, dada a proximidade com a praia. Hoje percebo o que eles querem dizer com isso. Em “Uma Viagem a Portugal” – um dos meus livros preferidos (por razões óbvias) – José Saramago escreve: “O fim da viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite, com o sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava.”
No fundo, pelas palavras mais conhecidas do mesmo autor, “é preciso sair da ilha para ver a ilha”. Se tivermos vivido uma vida inteira de determinada maneira, é-nos natural agir dessa forma. Ao “sair da ilha”, percebi que temos uma sorte desgraçada e nem nos apercebemos.
Outras coisas dessa bucket-list incluem ir aos Pastéis de Belém, visitar todos os amigos a quem prometi uma visita, ir à Feira do Livro no Parque Eduardo VII, ir à rua dos cafés e estar em casa, por exemplo. Esta última é pouco compreendida. Eu percebo… Estive tão longe durante tanto tempo e quero fazer tantas coisas, para quê fechar-me em casa?
A verdade é que há algo de tranquilizador em estar entre as quatro paredes que me viram crescer. Vivi naquela casa a minha vida inteira. Aliás, os meus pais mudaram-se para lá precisamente porque eu ia nascer. Muitas vezes, após o regresso e ainda de mala por desfazer, sento-me aos pés da cama e fico apenas em silêncio no meu quarto. É terapêutico. Quase como se estivesse a aproveitar de uma vez só todos os silêncios que não tive ali.
No pólo oposto do silêncio (mas igualmente terapêutico), está o melhor grupo de amigas que a vida me deu. Digo “a vida”, mas refiro-me, na verdade e invariavelmente, ao basquetebol. Jogámos todas juntas, de minibasquete até juniores, no mesmo clube. Para além disso, frequentávamos as mesmas escolas e algumas de nós até estiveram na mesma turma durante alguns anos. Não havia o que não soubéssemos (e o que não quiséssemos saber) umas das outras.
Hoje em dia, já nenhuma delas joga federado e apenas duas continuam no universitário. Numa tentativa de nos separarmos ainda mais, seguimos percursos académicos completamente divergentes. No entanto, isso não nos impede de nada. Até é capaz de ajudar. Somos muito diferentes, mas ainda nos encontramos com a mesma energia e o mesmo entusiasmo, ano após ano. Acho que agora vai ser assim até ao fim da vida. Numa crónica para o Público, Miguel Esteves Cardoso escreveu as palavras que eu não sei, mas que também sinto: “O tempo não passa pela amizade. Mas a amizade passa pelo tempo. É preciso segurá-la enquanto ela há.”
Elas dizem que não estão juntas muitas vezes quando não estou, mas não sei se é mesmo assim… (Eu bem vejo como o nosso grupo no Messenger é ativo!)
De uma maneira ou de outra, a verdade é que, religiosamente, sempre que regresso, há encontro marcado sem ser sequer necessário marcá-lo. Não interessa o que têm para fazer; se for preciso, largam tudo e temos jantar em casa da Matilde (mesmo que a própria não saiba).
Gosto de acreditar que sou a cola – mesmo que não seja; mas principalmente, quando sou – de um grupo que eu espero que nunca se separe. E se para isso for preciso voltar, eu hei-de continuar a ir.
Nesse verão, estou quatro meses em casa. Dizem que Lisboa hoje é mais dos turistas do que dos lisboetas; eu decido ser as duas coisas para ter a certeza que a cidade não me escapa. Visito miradouros, castelos, praias e restaurantes típicos como se fosse a primeira vez. Preciso de respirar sem o sabor das palavras estrangeiras na boca. Quero ver tudo – e para isso, basta-me ver a cidade aberta ao Tejo.
Ainda assim, não paro de treinar. Sigo o plano físico no ginásio diariamente e vou treinar no campo à noite. No final de maio, sou chamada ao primeiro estágio da Seleção Nacional Sub-20. Fico em Sangalhos até quase ao final do mês seguinte, quando sou dispensada dos treinos. A possibilidade de fazer outro Campeonato da Europa terminara ali.
No entanto, no dia 21 de junho, sai a convocatória da Seleção Nacional Sub-23 de 3×3. Junto-me às experientes Emília Ferreira, Josephine Filipe e Sofia Pinheiro para ir estagiar em Algés, sob comando de Américo Santos.
Dia 25 do mesmo mês, aterramos em Barcelona e daí seguimos de autocarro até Tarragona, o epicentro da XVIII edição dos Jogos do Mediterrâneo. No hotel, cruzo-me frequentemente com grandes nomes do desporto português, nomeadamente a Patrícia Mamona ou a Telma Monteiro. Parece irreal.
No dia em que era suposto começar a competição, o chão da Arena onde os jogos de basquetebol iam acontecer cede e todas as partidas são atrasadas. As nossas acabam por passar para o dia seguinte.
Perdemos os primeiros dois jogos. Com a Eslovénia, a derrota é pesada (13-6). Com Espanha, equipa da casa, a vitória escapa-nos por um ponto apenas. No mesmo dia, da parte da tarde, enfrentamos Andorra (#1 do ranking) e vencemos por oito pontos.
Estava tudo em aberto para o último dia. Vencemos a Grécia com um ponto no último segundo. Andorra, que ainda não havia ganho nenhuma partida até então, vence a Eslovénia e, dessa forma, nós passamos às meias.
Se já era estranho ver o Fernando Pimenta ali ao lado, tudo fica ainda mais bizarro quando estamos a disputar medalhas. No jogo das meias-finais, com França, perdemos apenas por um, após prolongamento. Seguindo a melodia de “não vim até aqui para vir só até aqui”, vamos para o jogo dos terceiro e quarto lugares com a confiança de que, desta vez, a medalha não nos vai escapar.
E não escapou. Num jogo impróprio para cardíacos, vencemos a Sérvia pela margem mínima e garantimos, assim, a medalha de bronze, naquela que seria a primeira participação de Portugal nos Jogos do Mediterrâneo.
Regressamos a Lisboa com uma medalha ao peito. É a minha primeira medalha internacional. Os meus pais, como sempre, recebem-me no aeroporto. (Já conhecem bem o Humberto Delgado.) Durante uns dias, durmo com a medalha para a sentir ao peito assim que acordo. Não quero que tenha sido apenas um sonho. E não foi.
por ANA SOFIA RUA