Origens do jumpshot

por dez 17, 2021

No rescaldo da noite no Madison Square Guarden em que Steph Curry se tornou no rei dos triplos, ultrapassando Ray Allen, vale a pena olhar para a história do basquetebol e prestar homenagem a quem tornou possível a magia do swoosh. Por incrível que possa parecer hoje em dia, o jumpshot (ou lançamento em suspensão) não fazia parte do menu original de basquetebol, quando este foi criado por James Naismith – tampouco pensou em drible ou afundanços. Importa, por isso, colocar a questão: quem inventou o jumpshot?

Comecemos com pragmatismo: ninguém sabe quem foi a primeira pessoa a decidir saltar durante um lançamento ao cesto. Ainda assim, há uma lista de pioneiros do lançamento em suspensão. Antes destes, o basquetebol era um jogo que, longe do cesto, se jogava com os pés bem assentes no chão.

Sabe-se que a inovação terá surgido algures nos anos 30 (embora possa ter surgido antes) e ganhou consistência durante a década de 40, quando surgem os primórdios da NBA.

Entre os vários candidatos, há alguns nomes mais fortes que outros, com a certeza de que todos os que entram na discussão ajudaram a empurrar o basquetebol em direcção ao que é hoje. A NBA dá créditos a um jogador pela generalização do lançamento, o Basketball Hall of Fame atribui esse feito a outro. E há literatura sobre o tema: o escritor John Christgau foi à procura dos criadores no seu livro sobre o tema, The Origins of the Jump Shot: Eight Men Who Shook the World of Basketball. O autor debruça-se em mais de oito nomes, desde jogadores universitários que surpreenderam os seus pares a basquetebolistas que popularizaram este gesto técnico.

Aqui no Borracha Laranja vamos falar de um dos nomes mais consensuais quanto à influência que tiveram na implementação do jumpshot como conhecemos hoje em dia: Ken Sailors. Não sem antes deixarmos menções honrosas a outros dois jogadores marcantes (e outros faltarão).

 – Glen “Glenn” Roberts, acreditado pelo Naismith Basketball Hall of Fame pela origem do lançamento em suspensão. Apareceu mais cedo que Ken Sailors, mas o gesto técnico seria diferente daquele que chegou aos nossos tempos. Ainda assim, é um jogador que deixou uma marca indelével no basquetebol, tendo conseguido, nos seus anos universitários, médias próximas de 20 pontos, que na altura eram um registo normal para uma equipa inteira. Profissionalmente, Roberts chegou a jogar três épocas na National Basketball League – uma liga criada em 1937 e que, em 1949, se fundiu com a Basketball Association of America (BAA) para formar a NBA. Uma história que também vale a pena ser partilhada.

“Jumping” Joe Fulks, o melhor marcador na época de 1946-47, a inaugural da referida BAA, que precedeu a NBA), com 22.2 pontos por jogo. Nessa mesma época, ajudou os Philadelphia Warriors (não é a única relação com o Curry que vão ver no texto) a conquistar o título. O seu gesto técnico também era distinto do de Ken Sailors, mas assentava igualmente na criação de vantagem ao saltar em lançamentos que não eram na passada (ver exemplos aos segundos 17 e 24). Fulks é o primeiro da linhagem de grandes marcadores de pontos da NBA, tendo sido o primeiro jogador a marcar 60 pontos num jogo (63 em 1949, um recorde que só foi batido 10 anos depois por Elgin Baylor).

Figura 1 – Fotografia de Ken Sailors a realizar o seu característico lançamento em suspensão. A fotografia foi tirada em 1946, no Madison Square Garden, e levada ao mundo pela revista Life. (Kenny Sailors Collection/American Heritage Center/KUniversity of Wyoming)

Ken Sailors

Diz o povo que a necessidade aguça o engenho. E quem o dirá também, com certeza, é Kenneth Lloyd Sailors – mais conhecido (mas menos do que merece) por Ken Sailors. Como referi acima, é difícil saber quem foi a primeira pessoa a saltar para fazer um lançamento ao cesto. O próprio Ken Sailors dizia o mesmo, admitindo que outros o poderão ter feito primeiro – incluindo Glen Roberts, admite. Nunca tomou o jumpshot como uma invenção sua: “Quem poderá saber quem foi o primeiro miúdo que saltou no ar e lançou uma bola de basquetebol?”

Com toda a razão. Mas não é por acaso que o mesmo Curry que bateu há dias um recorde de mais triplos marcados na história da NBA produziu um documentário sobre Sailors – em Jump Shot, ficamos a conhecer a vida de um homem que, nos anos 30, começou a fazer lançamentos em suspensão e com apenas uma mão, numa altura em que os lançamentos a alguma distância eram realizados com os pés assentes no chão, a duas mãos e com estas encostadas ao peito.

Se Ken Sailors não foi o primeiro a fazê-lo, foi o primeiro que o fez como se faz hoje. No entender do próprio Ken, Ray Meyer, treinador da DePaul University entre 1942 a 1984 que está no Basketball Hall of Fame, disse-o melhor: “Kenny Sailors pode não ter sido o primeiro jogador a saltar e lançar, mas desenvolveu o lançamento que é utilizado hoje em dia”.

É esse o entendimento que Sailors tem do seu lançamento: era único. O lançamento “dos três P’s”, como um amigo lhe terá dito um dia: “Pioneered, Perfected and Popularized(pioneiro, aperfeiçoado e popularizado, em português).

Voltemos ao engenho necessário. Decorria o ano de 1934. Ken Sailors tinha 13 anos e vivia então numa quinta nos arredores de Hillsdale, no estado de Wyoming. Como muitos miúdos da idade, Sailors cresceu a admirar o irmão mais velho. Era contra ele que jogava basquetebol, com um aro improvisado numa trave de madeira que prenderam a um moinho. E Ken jogava, claro, sem qualquer hipótese de vencer um único desafio.

“Nunca conseguia fazer um lançamento, e ele tirava prazer disso”, dizia Sailors. Do alto dos seus 1,96 metros, o irmão era bem maior que ele, que não passava de 1,70m.

“Ele ria-se e dizia ‘Kenny, este jogo não é para ti. Isto é para homens grandes, altos’”. (Conhecemos esta cantiga em relação a alguém que já leva quase três mil triplos no bolso e uns quantos anéis, não é?).

Um dia, decidido a conseguir lançar contra o irmão, Ken Sailors desvendou uma forma de o fazer com sucesso: “Driblei até ele. Ele não conseguia parar o meu drible, por isso driblei até ele e saltei. Até o assustou”, contou.

O lançamento foi muito semelhante ao que vemos hoje em dia em todo o mundo: saltou, levou a bola acima da cabeça e lançou-a com uma mão. Entrou e motivou elogios do irmão, impressionado e a perceber que havia ali algo valioso. “É melhor desenvolveres esse lançamento”.

O sucesso universitário

E desenvolveu. Anos mais tarde, a sua qualidade valeu-lhe um lugar na equipa da Universidade de Wyoming, apesar da baixa estatura. Um jogador rápido e com bom drible, o seu lançamento era a principal arma: um lançamento desconhecido para os oponentes, que se viam sem saber como defender.

O sucesso não parou numa simples chegada ao basquetebol universitário: em 1943, Ken Sailors levou a sua equipa ao único título da NCAA da história da universidade, conquistado em pleno Madison Square Garden (Onde é que o Curry bateu o recorde, mesmo? E vai mais um argumento para ser apelidada de Meca do basquetebol).

Não só venceu o título como também foi escolhido o Most Outstanding Player do Torneio. Como ainda não existia outro patamar acima da NCAA e existiam até outras competições rivais, a equipa dos Wyoming Cowboys ainda defrontou a vencedora do National Invitation Tournament, para responder a quem dizia que St. John’s tinha melhor equipa.

Num jogo realizado no MSG e com as receitas a irem para a Cruz Vermelha, os Cowboys ganharam este duelo e silenciaram os críticos.

(Facto curioso: os Wyoming Cowboys integram a conferência Mountain West, que Neemias Queta dominou nas suas épocas em Utah State. Em seis jogos, médias de 13.2pts, 10.2res, 1.8asts e 2.8 desarmes!)

Na sua carreira universitária, Ken Sailors foi seleccionado para duas equipas nacionais do ano, em1943 e 1946. Entre estas duas selecções, ainda teve tempo para ir até ao Pacífico combater uma II Guerra Mundial (nunca vi o Curry a lançar rockets no Afeganistão! *E ainda bem*).

O insucesso nas ligas profissionais

Terminado o percurso universitário, surgiu a oportunidade de jogar numa recém-formada liga profissional: a Basketball Association of America (BAA).

Sailors esteve quatro anos na liga – que em 1949-50 se fundiu com a National Basketball League (NBL) e formou a NBA. A sua carreira profissional não foi tão fácil como a universitária. Sailors não viveu bem com o estrelato e a sua curta carreira foi passada de franchise em franchise, em grande parte em equipas que não tiveram sucesso e numa altura em que as equipas viviam em grande instabilidade devido à falta de retorno financeiro, vendo-se forçadas a fechar ao fim de apenas uma época.

Nas três primeiras épocas passou por quatro equipas – realizou até dois jogos pelos Philadelphia Warriors, onde partilhou balneário com Joe Fulks.

Ainda assim, conseguiu números interessantes na primeira época da liga enquanto NBA (1949-50), ao serviço de uma primeira equipa dos Denver Nuggets (que foi desmantelada no final dessa temporada). Kenny registou 17.3 pontos por jogo, o quarto registo mais alto dessa temporada que viu um tal de George Mikan ser o melhor pontuador (27.4) – em quarto lugar, atrás de Sailors, na lista de melhores marcadores ficou o então rookie e futuro Hall of Famer Dolph Schayes.

Abandonou o basquetebol em 1951, com 30 anos.

Muito para além do basquetebol, mas muito no basquetebol

No lançamento do documentário sobre a vida que Kenny Sailors de que é produtor executivo, Steph Curry sublinha a importância que o jogador teve para o basquetebol, ao mesmo tempo que refere que o homem Kenny Sailors era muito mais que isso.

“O basquetebol era o jogo dele, mas o basquetebol não era a vida dele”, diz num vídeo gravado para ser reproduzido antes da estreia do documentário, em 2019. Kenny Sailors esteve casado durante 59 anos, até a sua mulher, Marilynne Sailors, ter falecido em 2002. Viveu mais de 30 anos no Alasca depois de ter vendido o rancho que comprara décadas antes no Wyoming.

Tal como se afastou dos locais onde o seu nome era basquetebol, o desporto também o esqueceu. Apesar da reconhecida inovação com o seu lançamento, que marcou todas as gerações seguintes, Ken Sailors nunca chegou a ser chamado para o Naismith Hall of Fame e apenas em 2012, aos 91 anos, foi introduzido no Hall of Fame universitário.

Uma injustiça para muitos, mas que nunca incomodou Kenny, que sempre valorizou mais outros feitos da sua vida. Reconhecido pelas pessoas mais próximas como maior ser humano do que como jogador, Ken Sailors faleceu em 2016, com 95 anos. No entanto, como legado, e para além das vidas que marcou pessoalmente, deixou um gesto técnico imortalizado e disseminado por todo o mundo que mudou para sempre o basquetebol.

O mesmo gesto técnico que permitiu a Curry chegar aos 2974 triplos na NBA, construir (e continuar a completar) um dos currículos mais ricos da liga e impactar o jogo do basquetebol de uma maneira igualmente influente. E é fácil encontrar vários paralelos entre estes dois jogadores: separados por mais de seis décadas, ambos se deram a conhecer numa universidade pouco conhecida pelo basquetebol; Ken Sailors na altura, tal como Curry agora, foi criticado pela imprensa e contestado por treinadores por jogar de uma forma que “estragava o basquetebol”.

O tempo mostrou que Ken Sailors estava certo, assim como ditará o impacto do estilo de Curry nas gerações que aí vêm. O que é certo é que ambos revolucionaram o jogo através… do jumpshot.

por JOSÉ VOLTA E PINTO [@zevolta97]

Autor

José Volta e Pinto

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