NBA Cares. Mas só de vez em quando.

por jan 8, 2024

A 28 de Junho de 2022, Mychelle Johnson foi parar a um hospital, após ser vítima de abuso doméstico por parte do namorado. O relatório do hospital descreveu as seguintes lesões: estrangulação, concussão cerebral, fractura do osso nasal, contusão nas vértebras, múltiplas nódoas negras e uma luxação muscular no pescoço. Todas as agressões foram feitas em frente às duas crianças do casal, de quatro e dois anos. O namorado primeiro afirmou que não tinha feito nada mas depois fez um acordo em tribunal de “no contest” para a acusação de violência doméstica, recebendo uma sentença de três anos de liberdade condicional.

A 6 de Outubro do ano passado, o namorado violou os termos da liberdade condicional, após atacar de novo Mychelle Johnson, atirando-lhe bolas de bilhar ao carro, partindo-lhe o vidro, para além de pontapear repetidamente as portas do carro. As crianças estavam dentro do veículo e, mais uma vez, assistiram a tudo. O namorado pagou uma fiança de 1000 dólares e voltou a sair em liberdade.

A 17 de Novembro, o ex-namorado de Mychelle Johnson entrou em campo para representar os Charlotte Hornets, depois de cerca um ano fora dos campos e após ter cumprido, oficialmente, 30 jogos de suspensão. Chama-se Miles Bridges e está no centro de uma das mais grosseiras aberrações de gestão que a NBA cometeu nos últimos tempos.

O que raio aconteceu aqui?

Repito: o que raio aconteceu aqui? Como é que é possível que uma coisa destas aconteça nos tempos que correm? Quando é que voltámos aos anos 50? Será que alguma vez saímos?

Está muito na moda – principalmente da parte de reaccionários (mal) encapotados – ignorar toda e qualquer medida de progressão social como sendo woke, um reflexo de uma sociedade demasiado sensível e que se indigna por tudo e por nada. A NBA, especificamente, é frequentemente apontada como o expoente máximo desta tendência no mundo do desporto norte-americano. Uma liga de e para snowflakes, sempre disposta a mostrar que está do lado progressivo nas questões sociais. Mas o Miles Bridges é bom a meter a bola dentro do cesto, por isso que se lixem as mulheres, não é?

Quando Donald Sterling foi apanhado em vídeo a dizer que dava mau aspeto a namorada dele ser vista em público com um homem negro, foi sumariamente expulso da liga. Sem hesitação. Legalmente, a liga teve de o deixar sair com mais uns milhares de milhões no bolso da venda dos Clippers, mas, não obstante, a mensagem foi clara: não queremos pessoas destas na nossa liga. O Adam Silver até fez uma conferência de imprensa com um ar todo soturno e preocupado. Foi sobejamente elogiado pela sua postura perante tão óbvio e grosseiro racismo. Mas quando um dos seus jogadores foi apanhado a agredir violentamente a namorada, tivemos um silêncio desconfortável. Seguido de um tépido coro de “temos de apurar os factos”, a “lapalissada” clássica de quem sabe a atitude correta mas não tem coragem para a tomar.

Porque dizer que se é contra o racismo é um pouco mais fácil numa liga tão dominada por talento negro e com uma base de fãs comparativamente muito mais diversa que a dos outros desportos norte-americanos. As consequências capitalistas de ignorar o racismo aberto já se tornaram incomportáveis para a maioria das empresas, felizmente. Quando é assim dito às claras, claro está. Quando se manifesta, entre muitos outros exemplos, na forma da opressão financeira sistemática das minorias étnicas, volta o véu de ignorância. Fingir que não se sabe o que está a acontecer até as pessoas se cansarem de refilar.

Ainda assim, há pelo menos um ónus social maior, hoje em dia, em pelo menos tentar passar a imagem de que não se é racista. Já a violência doméstica é tão comum e (ainda) aceite, que dá para ignorar quando ela acontece – seja em segredo ou à vista de todos – e manter o dinheirinho a entrar, não é verdade? Ela provavelmente estava a pedi-las. Que outro motivo teria ele para lhe bater? E o rapaz é tão bom a meter a bola no cesto. Até faz uns afundanços todos supimpas, o maluco. Os fãs adoram-no. Lançou um álbum de rap e tudo. Talvez um dia consiga uma colaboração com o Chris Brown.

United Colors Of Benetton. Todas em tons de verde.

NBA Cares

Em 2005, a NBA lançou a “NBA Cares”, uma excelente iniciativa, que tem levado apoio a muitas comunidades desfavorecidas um pouco por todo o mundo. Inúmeros jogadores da liga têm dado muitas das suas horas livres para ajudar e inspirar os seus fãs através de contacto direto. Fãs de todas as idades e etnias e géneros. “A NBA é para todos”, pode-se ler no site da “NBA Cares”. Todos.

É estimado que, todos os anos, cerca de 7.5 milhões de mulheres são vítimas de violência doméstica. Muitas vezes, de forma repetida e regular. Portanto, desde a inauguração da NBA Cares, são cerca de, no mínimo, 125 milhões de incidências de violência doméstica em que as mulheres são as vítimas. Isto é culpa da NBA? Óbvio que não. Mas não deixo de sentir um certo travo amargo a hipocrisia na boca.

O nojo que sinto por esta situação chega e sobra para todos os envolvidos. Sinto nojo pelo Miles Bridges, que, para além de ser um verme cobarde que bate em mulheres, vê recompensada a sua cobardia com a garantia de continuar a ganhar milhões e ser adorado por um número deprimente de fãs. Sinto nojo pelo sistema judicial, que considera três anos de liberdade condicional uma pena adequada para este tipo de violência atroz. Sinto nojo pelo Mitch Kupchak e toda a estrutura organizacional dos Charlotte Hornets, que não hesitou em voltar a contratar o dito verme mal sentiu que a coisa poderia passar relativamente despercebida. Sinto nojo por todos os jogadores que manifestaram o seu apoio ao verme em questão. Sinto nojo pelo Adam Silver, que demonstrou que os seus valores morais são condicionais. Sinto nojo, muito nojo.

Mas o Miles Bridges é bom a meter a bola num cesto, por isso para que interessa o meu nojo? Já devia ter aprendido que a decência humana só interessa se for economicamente viável. Vamos lá a tratar disso, mulheres abusadas. Tornem o horror diário das vossas existências mais fácil de converter numa campanha toda catita e sustentável. Se não conseguirem, já sabem que a culpa é toda vossa. Não é sempre?

Autor

Pedro Quedas

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